O debate sobre as patentes de remédios e vacinas ganhou as agendas
nacionais e internacional e alimentou o debate sobre como as patentes são um
entrave à promoção do acesso rápido e equitativo às vacinas, principal recurso
de contenção da pandemia da Covid-19.
Em 2020, a Oxfam lançou estudo revelando que, em novembro daquele ano,
os países mais ricos já haviam comprado 53% das doses disponíveis dessa
primeira produção, para vacinar a população até final de 2021. Já os países
mais pobres do mundo não haviam conseguido fechar nenhum tipo de acordo de
compra com as farmacêuticas.
Recentemente, com o surgimento da variante Ômicron, o mundo ficou
chocado ao saber sobre os baixíssimos níveis de vacinação nos países africanos.
A desigualdade de poder econômico entre países foi catalisadora da desigualdade
de acesso às vacinas no mundo.
No caso brasileiro, vimos o governo com uma postura negligente e
irresponsável para garantir o acesso às vacinas para toda a população
brasileira com celeridade. Por aqui, o debate sobre as patentes e a licença
compulsória é antigo e temos a muito bem-sucedida experiência da aplicação da
licença compulsória para os tratamentos de HIV-AIDS no país, política
considerada referência no mundo.
Entretanto, a licença compulsória ainda não era lei. Ao longo de 2020 e 2021,
a Oxfam Brasil, em parceria com o Grupo de Trabalho sobre Propriedade
Intelectual (GTPI/REBRIP) e outras organizações aliadas, trabalhou pela aprovação da licença compulsória, que somente foi
aprovada pelo Congresso Nacional no agosto de 2021, por meio do PL nº 12/2021 e
foi transformado na Lei de Licenças (Lei 14.200/2021), no
dia 02/09/21.
O que é licença compulsória? Por que a licença
é importante?
A patente
gera um monopólio garantido pelo Estado, concedido a uma empresa, que pode
impedir outras de fabricar, vender uma tecnologia. Com isso, pesquisas ficam
restritas, a oferta do produto é limitada e os preços sobem.
A licença
compulsória é um dispositivo legal que permite aos governos suspender as
patentes de medicamentos e vacinas em momentos de crise sanitária. Existe há
quase cem anos e busca o equilíbrio entre o interesse público (saúde pública,
no caso) e o interesse privado. Com a licença compulsória, é possível que haja
concorrência de genéricos, ao mesmo tempo que compensa a empresa por meio de royalties.
Em meio à pandemia de Covid-19, teremos mais velocidade na produção,
distribuição e vacinação de pessoas. Quando a tecnologia for compartilhada,
mais empresas poderão fabricar e distribuir as vacinas.
Desde 2001,
existe também um consenso na Organização Mundial do Comércio (OMC) – a chamada
Declaração de Doha sobre TRIPS e Saúde Pública – de que crises de saúde pública
justificam o uso de licença compulsória para garantir acesso a medicamentos e
outros bens de saúde.
Com as
licenças compulsórias, o Brasil poderá ter acesso, em curtíssimo prazo, a
tratamentos com uso emergencial aprovado para Covid-19, como por exemplo remdesivir
e baricitinib. No médio prazo, será possível desenvolver e
incorporar tecnologias importantes.
A Lei
14.200/2021
A lei prevê a adequação do licenciamento compulsório a
tempos de emergências nacionais em saúde (como a pandemia de Covid-19),
tornando mais célere o acesso da população a tecnologias úteis. Ainda, a
lei brasileira está alinhada com os tratados internacionais sobre o tema. Além
disso, prevê obrigação de o titular da patente (farmacêuticas, no caso)
compartilhar informações tecnológicas para acelerar o desenvolvimento
tecnológico nacional. Estipula prazos para que o Governo Federal emita licenças
compulsórias. E impede que a produção/comercialização de produtos essenciais
para reduzir hospitalizações e mortes sejam controlados por umas poucas
empresas estrangeiras.
No cenário
atual, a lei contribui para diminuir o número de casos e mortes de Covid-19 no
Brasil, aliviando a pressão sobre o sistema de saúde. Não se trata apenas de
garantir preços acessíveis para as vacinas e demais insumos (como equipamentos
de proteção individual, oxigênio comprimido etc.), mas também a produção em
quantidades suficientes, posto que as empresas farmacêuticas não serão capazes
de suprir sozinhas a enorme demanda global.
E as empresas
farmacêuticas, como ficam nisso?
A lei também é positiva para as
farmacêuticas: as
empresas detentoras das patentes recebem royalties caso o governo compre de
outro fornecedor. Mesmo com o uso da licença compulsória, as empresas
detentoras da patente não perdem o direito de explorar sua invenção. Elas vão
atuar no mercado mantendo vantagens competitivas e podem ser fornecedoras
preferenciais do produto. Essas empresas perdem apenas o direito de excluir
outras do mercado e, por isso, recebem royalties em compensação.
Não podemos esquecer que,
do total investido para o desenvolvimento de vacinas ($ 13,9bilhões de
dólares), apenas $3,4 vieram de empresas privadas. Governos aportaram $8,6
bilhões de dólares e iniciativas sem fins lucrativos, $1,9 bilhões. Ou seja, as
vacinas da Covid-19 são um bem público, não um bem privado!
E agora que a lei foi aprovada, quais os próximos passos?
Para proteger a vida, é preciso combater a violência estrutural
que hoje divide o mundo entre uma minoria privilegiada, que tem acesso
prioritário a imunização e tratamentos eficazes, e uma maioria excluída ou com
acesso limitado a essas ferramentas de combate à pandemia.
No Brasil, isso já está se refletindo na distância entre o sistema
privado, onde começam a ser ofertados tratamentos para casos graves que são
recomendados pela Organização Mundial de Saúde ou pelas autoridades de saúde dos
EUA, e o sistema público, onde esses tratamentos de alto preço não estão
disponíveis. De acordo com o portal UTIs Brasileiras, a mortalidade nas
unidades intensivas do SUS é de 53,3% enquanto nos hospitais particulares é de 30,8%.
Conforme dados de 11 de janeiro de 2022, 67,08% da população
brasileira está totalmente
imunizada (com duas doses ou dose única), mas há uma discrepância muito grande
entre os estados do país. Enquanto São Paulo tem 78,96% da população que
já tomou as duas doses ou dose única, o Amapá tem apenas 39,14% da sua
população com ciclo vacinal completo e
Roraima tem 39,68%.[1]
Quando
foi sancionada, a Lei de Licenças sofreu um veto: o veto 48/2021, dificultando
o compartilhamento de informações que são fundamentais à transferência de
tecnologia para a disseminação da produção de vacinas e medicamentos. Mais uma
vez, o governo federal optou por defender os interesses das empresas farmacêuticas,
em detrimento do interesse maior da população.
A Oxfam Brasil, o GTPI/REBRIP, a ABIA, o Médico sem Fronteiras, o IDEC e
outras organizações parceiras têm trabalhado pela derrubada do veto 48/2021.
Por que é importante derrubar os vetos à Lei 14.200/2021?
Além do desafio de equalizar o acesso às vacinas em todo o território
nacional (1ª e 2ª doses), soma-se a isso a
necessidade de dose de reforço a partir de cinco meses após a segunda dose para
toda a população brasileira adulta. O Brasil está
somente no começo da vacinação das doses de reforço, enquanto o ciclo
imunológico da população vacinada começa a cair.
Estudos já apontam a transformação da covid-19 em endemia, o que demandará a organização de campanhas anuais de vacinação, com compras de cerca de 400
milhões de doses a cada ciclo.
Além disso, os preços extorsivos cobrados por vacinas estão causando um
impacto significativo no já combalido orçamento da saúde, tendo em vista que apenas a compra de vacinas da Pfizer custou praticamente o dobro de
todo o orçamento regular do programa nacional de imunização de 2021. Uma
análise recente da organização Public Citizen, em parceria com o Imperial College de Londres, estimou que as vacinas da Pfizer poderiam ser produzidas
por um custo de U$1,18 a U$2,85 por dose. O Brasil comprou cada dose da empresa
norte-americana por U$10,00, no primeiro contrato, e por U$12, no segundo.
Em 2021, o governo investiu cerca de R$ 27 bilhões para compras de vacinas contra covid-19. Mas o orçamento previsto para compras dessas vacinas para 2022 é
de apenas R$ 3,9 bilhões.
São necessários mecanismos que permitam produzir e importar
vacinas e medicamentos com rapidez e a preço justo, de modo a permitir a
imunização de todas as pessoas o mais rápido possível e levar mais esperança
para quem busca um tratamento.
A Lei de Licenças em sua plena efetividade, sem quaisquer vetos, é
o que nos garante esses mecanismos.
[1] https://especiais.g1.globo.com/bemestar/vacina/2021/mapa-brasil-vacina-covid/