Quando a pandemia de covid-19
atingiu o Brasil, resultou em uma crise social, econômica e sanitária, pois o país estava vulnerável
em diferentes dimensões, cenário que vem se agravando desde 2015 e interrompeu a tendência de redução
da desigualdade de renda, verificada desde o início dos anos 2000.
Em 2018, a renda das mulheres diminuiu em relação à dos homens, um fato inédito
no século XXI, ao lado de quase uma década de estagnação da proporção da renda
média da população negra brasileira em relação aos brancos. Com o posterior
declínio nos indicadores socioeconômicos e a adoção de medidas de austeridade
que restringiram os investimentos em políticas públicas sociais, esse cenário
se agravou ainda mais, com aumento do desemprego
e interrupção de políticas públicas como a política de aumento do valor real do salário
mínimo.
A epidemia de desigualdade no
Brasil antecedeu a pandemia de Covid-19. Segundo o IBGE[1],
em 2018 o Brasil era o oitavo
país mais desigual do planeta e a desigualdade de
renda havia atingido o maior patamar desde 2012, pois a renda dos 10% mais
ricos era 13 vezes superior à média dos 40% mais pobres.
Negros e mulheres, base da pirâmide social brasileira, continuam sendo os mais
afetados nesse contexto.
Desemprego e perda
de renda
A pandemia de Covid-19 acelerou
o agravamento da crise social e econômica no Brasil. De abril de 2020 a abril
de 2021, estima-se que 377 brasileiros
perderam o emprego por hora; no pior momento da
crise, quase 1.400 brasileiros foram demitidos por hora e o Brasil registrou recorde de 14,4 milhões
de desempregados em abril de 2021. Quase 600 mil empresas
faliram, prejudicando sobremaneira os indicadores
de emprego no país. Os programas destinados a garantir o emprego foram mal
implementados e promoveram condições de trabalho
precárias para jovens e grupos vulneráveis.
No terceiro trimestre de 2021,
o desemprego caiu para 13,5 milhões
de brasileiros, devido ao aumento da
informalidade e empregos precários, porém a taxa de desemprego entre os negros
ainda é maior do que entre os brancos, contribuindo para maior desigualdade de
renda. No Brasil, as mulheres ocupam mais empregos informais do que os homens,
portanto, a perda de renda entre as mulheres foi maior durante a pandemia,
causando efeitos colaterais de aumento do isolamento e
maior exposição à violência doméstica.
Estudo mostra que uma em cada quatro
mulheres brasileiras foi vítima de violência
durante a pandemia.
Epicentro da fome
A fome disparou durante a
pandemia. Em dezembro de 2020, 55% da população
brasileira estava em situação de insegurança alimentar
(116,8 milhões, equivalente à população conjunta da Alemanha e Canadá) e 9%
passavam fome (19,1 milhões, superior à população da Holanda). Isso representa
um retrocesso aos patamares verificados em 2004. O vírus da fome afeta
mais as mulheres e os negros no Brasil – 11,1% dos domicílios chefiados por
mulheres e 10,7% dos domicílios liderados por negros passavam fome no final de
2020, em comparação com 7,7% dos domicílios
chefiados por homens e 7,5% das famílias encabeçadas por brancos.
O papel dos
programas de transferência de renda
Medidas emergenciais foram
adotadas para mitigar os impactos da pandemia no Brasil. Destaque para o
Auxílio Emergencial, programa de transferência de renda estabelecido a partir
da mobilização da sociedade civil e do Congresso Nacional brasileiro, cuja cobertura
atingiu 67 milhões de brasileiros (31% da população do Brasil) com investimento
público de R$ 322 bilhões (US$ 58,4). bilhões), o que corresponde a 4% do PIB
brasileiro. O Auxílio Emergencial contribuiu para a redução do índice de
pobreza do Brasil de 11% no final de 2019 para 4,5% em agosto de 2020,
mas, entre abril e dezembro de 2021, o benefício foi reduzido e está sendo
assegurado para pouco mais de 50% dos
beneficiários de 2020, dificultando sua atuação como
barreira contra a fome e a pobreza. Pelo menos outros 20 milhões serão
excluídos dos programas de transferência de renda
em 2022.
Criado em 2003, o Bolsa
Família, programa de transferência de renda reconhecido
internacionalmente, foi extinto em novembro
de 2021. Seu substituto – o Auxílio Brasil – desmonta quase duas
décadas de uma política bem-sucedida de combate à
pobreza em um momento em que
ela é mais necessária. Milhares de famílias
vulneráveis estão mal atendidas
durante o período de transição entre os programas.
Desigualdade no
acesso à saúde
Após mais de 600 mil mortes, o
acesso desigual aos serviços de saúde deixou cicatrizes nos mais vulneráveis do
Brasil.
Estudos de 2020 apontam a
desigualdade como fator para o avanço do coronavírus nas periferias
brasileiras, aumentando em até 50% o risco de morte pelo coronavírus.
Mesmo com a vacinação no Brasil,
resultado da importância do Sistema Único de Saúde – SUS, a maioria das mortes
por covid-19 está concentradas nas
periferias das grandes cidades, em decorrência do acesso desigual às
vacinas, entre outros. Segundo a OCDE, negros têm 1,5 vezes
mais chances de morrer de Covid-19 do que brancos
no Brasil.
O regresso das
políticas de austeridade
Após a existência de um modelo orçamentário
excepcional – permitindo a aprovação do programa
Auxílio Emergencial em 2020 – o discurso pró-austeridade voltou a todo vapor em
2021. Como resultado, foram aprovados
diversos cortes orçamentários em áreas-chave para o enfrentamento da pandemia
de covid-19, como ciência e tecnologia, saúde e
educação. Até o orçamento para as vacinas contra a covid-19 foi reduzido em 8,5%
na previsão orçamentária de 2022. As políticas de austeridade estão sendo
aplicadas apesar do consenso internacional
sobre a recuperação pós-pandemia, sob o
falso discurso de que o cenário fiscal brasileiro exige austeridade.
O “remédio” contra a
epidemia de desigualdade
Uma solução possível – uma reforma tributária justa – não é prioridade para os tomadores de decisão. Uma oportunidade perdida: segundo pesquisa da Oxfam Brasil, 84% dos brasileiros concordam em aumentar os impostos dos muito ricos para financiar políticas sociais; 56% estão de acordo com o aumento de impostos para todos como forma de apoiar as políticas públicas. Os brasileiros também apoiam o forte e decisivo papel do Estado como provedor de políticas públicas. 86% acreditam que o progresso do Brasil está condicionado à redução da desigualdade entre pobres e ricos, enquanto 85% concordam que é obrigação dos governos reduzir a distância entre muito ricos e muito pobres. Esses são os “remédios” que precisamos para enfrentar a epidemia de desigualdade no Brasil.