Por Beatriz de Oliveira, do Nós, Mulheres da Periferia.
“África liberta em suas trincheiras, quantas anônimas guerreiras brasileiras”. Este foi um dos versos entoados pela cantora do Afoxé Oyá Alaxé, atriz e contadora de história Ana Benedita, para abrir os caminhos da 2ª edição da Jornada das Pretas, reverenciando nomes de mulheres que lutaram contra a escravidão no Brasil: Luiza Mahín, Alquatune e Maria Filipa de Oliveira. “Salve as mulheres negras”!
Organizado pela Oxfam Brasil em parceria com o Instituto Alziras, Mulheres Negras Decidem e o Instituto Marielle Franco, a segunda edição da Jornada das Pretas teve início no último sábado (14/5) com uma discussão sobre o espaço das mulheres negras no processo eleitoral deste ano. Mesmo em um ambiente virtual, as participantes mostraram que afeto é política.
Reunindo 50 mulheres negras ativistas de diferentes estados, a Jornada terá um total de três encontros – os próximos ocorrem nos dias 21 e 28 de maio. “A ideia é fortalecer a construção de agendas, compartilhar experiências e trajetórias de mulheres negras. Fazer isso tudo em um espaço de encontro seguro e fortalecedor. Nesse processo, as experiências importam”, afirmou Monica Oliveira, facilitadora da Jornada das Pretas e assessora parlamentar em Pernambuco.
Trabalho de mãos dadas
Fabiana Pinto, coordenadora de incidência e pesquisa do Instituto Marielle Franco, reforçou a importância do afeto no evento. “Para além de um espaço de encontro entre essas mulheres que já estão na política, é um espaço de troca e de afeto, de saberes, de fortalecimento. Às vezes, temos espaços duros para discutir a conjuntura política. Eu enxergo a Jornada como um espaço de acolhida”, disse.
“Esse trabalho é sobre mãos dadas. Nossa fala não é individual. Nosso movimento é coletivo. Estamos aqui para transformar e fazer com que esse Brasil seja cada vez mais negro”, pontuou também Tauá Pires, coordenadora de Justiça Racial e de Gênero da Oxfam Brasil.
Ao se apresentarem, as diversas participantes ressaltaram a importância de partilhas como essa da Jornada, por serem ambientes de fortalecimento e de respiro em meio às lutas políticas. Algumas pré-candidatas a cargos nas eleições deste ano compõem o grupo da jornada.
O velho padrão continua mandando nos espaços de poder
Partindo do tema “Análise de Conjuntura”, a convidada
Piedade Marques, da Rede de Mulheres Negra de Pernambuco, afirmou que todas
podem fazer uma análise desse tipo. E ressaltou a importância de construir um
olhar macro, mesmo partindo de questões territoriais.
“Sendo periférica e negra, eu fico pensando que uma das coisas que a gente não
pode esquecer é que existe um movimento, que é o aumento da onda
neoconservadora. E percebemos isso quando olhamos a realidade mais ampla,
algumas democracias correram risco, não só a nossa, ameaçadas pelo racismo,
misoginia, e necropolítica – a definição de quem morre”.
Para Piedade Marques, o que vivemos hoje é em parte consequência do golpe de 2016, que tirou Dilma Rousseff da Presidência da República. Além disso, a ativista ressalta que a eventual vitória de Lula nas eleições de 2022 não resolve todos os problemas atuais e que é preciso construir estratégias de luta para além do “Fora Bolsonaro”.
“Depois da saída da Dilma, vêm as grandes perdas de direitos. Precisamos trazê-los de volta”, reafirmou Piedade. Para ela, ainda, é importante contextualizar que os caminhos trilhados pelo atual governo não é um fato brasileiro isolado, mas integra uma onda conservadora em todo o mundo. Para ela, mesmo com a saída do atual governo, a população negra e periférica terá muito a resolver.
“Temos o velho padrão – homem, branco, hetero, rico – que continua mandando nos espaços de poder. Está aí o nosso grande desafio nesse cenário posto. Nós temos mais problemas do que isso, que é o olhar e o local que a população negra está sendo considerada”, complementou.
Mulheres negras precisam se sentar à mesa da construção de políticas públicas
Segunda convidada a falar, a advogada e superintendente adjunta do Fundo de Direitos Humanos do Brasil, Allyne Andrade, lembrou de outro fato relevante para a política brasileira: as jornadas de junho de 2013. Na visão dela, desde esse evento estamos vivendo dúvidas democráticas e emergência de forças silenciadas desde a ditadura.
Sobre o processo eleitoral deste ano e a chapa Lula-Alckmin, Allyne afirmou que o ex-governador de São Paulo liderou o estado durante anos com grande violência contra o povo negro. Questiona: “Que mundo é esse que a gente consegue depositar nossas esperanças numa chapa Lula e Alckmin?”. E responde: “A gente está nesse momento vivendo praticamente uma economia de pós-guerra, com volta da inflação e a economia paralisada”.
A partir da foto da equipe do candidato Lula que repercutiu nas redes por ser composta apenas por pessoas brancas, Allyne afirmou que as mulheres negras atuantes na política devem cobrar espaço de participação nos partidos. “Se estamos aceitando ser linha de frente, a gente precisa sentar nessa mesa para reconstruir as políticas públicas. Hoje no Brasil, vamos precisar reconstruir as políticas públicas de racial e gênero.”
Disputa narrativa e candidatura de mulheres negras
Um dos assuntos que tem se destacado em relação às eleições deste ano é a disputa de narrativa – e o tema foi analisado pelas participantes da Jornada das Pretas. “Além de dizer Fora Bolsonaro, essa população está dizendo que quer construir alguma coisa”, apontou Piedade Marques.
Nas eleições municipais de 2020, mais de 90 mil mulheres se candidataram, um aumento de 23% em relação a 2016. Piedade Marques lembrou, no entanto, que, apesar desse aumento, resultado de levantes liderados pelas pretas, como a Marcha das Mulheres Negras ou, então, a busca por justiça frente o assassinato de Marielle Franco, os corpos negros não são prioridade para os partidos onde estão presentes.
As eleições de 2022 ocorrem nos dias 2 e 30 de outubro, datas em que os brasileiros escolherão presidente da República, governadores dos estados, senadores e deputados federais, estaduais e distritais. Segundo levantamento feito pela Folha de S. Paulo, mulheres são apenas uma em cada sete pré-candidatos a governos estaduais.
“Na hora [dos partidos] definirem as prioridades, não são nossos corpos, vivências e demandas que são prioridades. Temos trazido corpos fora da ordem mundial. Mulheres negras, trans e de matriz africana para a disputa. Nas últimas eleições, teve certo crescimento das mulheres trans, mas mesmo após as eleições, são as que mais são perseguidas”
Mulheres e homens trans
A Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) mostrou que, das 294 travestis, mulheres transexuais e homens trans que concorreram às eleições municipais em 2020, 30 foram eleitas. Quando comparado às eleições municipais de 2016, o número representou um crescimento de 275%. Um estudo da revista AzMina e da ONG InternetLab indica, no entanto, que na campanha de 2020, ao menos 123 candidatas do Brasil receberam, em média, 40 xingamentos por dia.
Allyne questiona também qual o lugar que as mulheres negras ocupam na política institucional, ressaltando a importância do apoio dos partidos. “Precisamos cobrar de nossos aliados que a gente não seja aquelas que recebam ódio. Os partidos políticos de esquerda têm que entender nosso lugar”.
Muito além da paridade
Para finalizar sua fala, Piedade deixou uma reflexão: “Precisamos fazer uma grande provocação na sociedade. Pensar questões que podem ser usadas com eleitores na rua. A disputa da narrativa traz todas as possibilidades. Como usamos essa eleição para pensar para frente? Com estratégias de médio e longo prazo.”
Para Allyne, é importante criar uma cultura de proteção e segurança para as mulheres negras na política, já que esse grupo, representado por 27% da população, é o único capaz de apresentar novos caminhos para o país. “O Brasil não consegue se reconstruir sem a presença de mulheres negras e mulheres trans e travestis. Qualquer utopia hoje no Brasil só vai se construir com nossa presença. Como construir um imaginário de futuro em um ambiente onde precisamos primeiro permanecer vivas e saudáveis?”