Foto: Agência Brasil
O trabalho escravo moderno, ou trabalho análogo à escravidão como definido pela legislação brasileira, é mais comum no Brasil do que imaginamos. Desde 1995, quando começaram as fiscalizações específicas, mais de 50 mil pessoas foram resgatadas nessas condições.
Em geral, o trabalho escravo moderno começa com a informalidade e daí vai piorando, podendo envolver condições degradantes (ambientes insalubres e/ou perigosos, falta de água e equipamentos de proteção, comida podre etc), retenção de documentação, não pagamento ou descontos ilegais no salário, servidão por dívida, sequestro e violência.
No Brasil, os setores que mais são flagrados com trabalho escravo moderno são o agronegócio, a construção civil, a moda e o serviço doméstico. Interessante notar que são setores que produzem muita riqueza – mas quase nunca para os trabalhadores. Na moda, por exemplo, grandes marcas de luxo e famosas marcas do varejo nacional volta e meia são acusadas de usufruírem do trabalho escravo, muitas vezes de imigrantes. No caso do serviço doméstico, temos muitos casos que chamam a atenção, quase sempre envolvendo famílias de classe alta.
Mulher da Casa Abandonada não é caso único
Um dos podcasts mais comentados da atualidade, A Mulher da Casa Abandonada, trouxe à tona um intrigante caso de trabalho escravo doméstico no coração da cidade de São Paulo.
A história contada no podcast pelo jornalista Chico Felliti tem peculiaridades e enredo típicos de um filme ou série de suspense (e terror), mas o caso não é único, pelo contrário – e vem de longe.
A raiz do problema está na história do nosso país. Na escola, muitas vezes, aprendemos sobre a utilização da mão-de-obra de pessoas escravizadas nos latifúndios e não muito mais do que isso. A situação, no entanto, era bem mais complexa.
No século 19, a posse de pessoas escravizadas se difundiu pela sociedade brasileira. Diversas indústrias, no Rio de Janeiro e em São Paulo, utilizavam a mão-de-obra escravizada. Mesmo a incipiente ‘classe média’ que surgia, formada por profissionais liberais, usava pessoas escravizadas no serviço doméstico, em suas atividades profissionais e fazendo serviço para fora, como ‘escravos de ganho’, gerando renda para o ‘senhor’. Ou seja, as pessoas escravizadas não eram usadas apenas pelos senhores de terras, os mais ricos do Brasil: a prática estava difundida por outras camadas sociais.
População negra não recebeu reparação pela escravidão
Mesmo após a abolição, em 1888, a situação não melhorou significativamente para a população negra. Milhões de mulheres, homens e crianças foram libertos, mas estavam excluídos das principais atividades profissionais e não receberam reparação alguma por terem sido escravizados. Chegou-se, inclusive, a se discutir no Congresso brasileiro da época a necessidade de se trazer para o país trabalhadores que não fossem negros para realizar o ‘trabalho livre’.
Conforme alguns direitos foram sendo garantidos aos trabalhadores ao longo dos anos posteriores, algumas categorias foram sendo excluídas. Trabalhadores rurais e domésticos, por exemplo, não foram incluídos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), de 1943. A garantia ampla dos direitos trabalhistas de quem atua no campo só veio a partir dos anos 1970 e, depois, com a Constituição de 1988, e para as trabalhadoras domésticas, só a partir de 2015.
Isso não foi coincidência, mas um legado direto do regime escravocrata brasileiro, que não permitiu a ascendência da população negra a espaços brancos, elitizados e de destaque, nem deu acesso a políticas públicas básicas como educação, saúde e serviço social.
Esse triste legado está presente até hoje no Brasil, como podemos ver nos milhares de casos de trabalho escravo moderno denunciados ano após ano. O caso do podcast A Mulher da Casa Abandonada é um lembrete de como o regime escravocrata brasileiro se faz presente até hoje.
Orçamento para o combate ao trabalho escravo vem caindo
Mais do que apenas refletir sobre as formas de trabalho análogo à escravidão que persistem hoje no Brasil, é preciso agir para combater a questão com firmeza e seriedade. Temos no país boas fiscalizações, legislações e políticas públicas de enfrentamento ao trabalho escravo, mas para que sejam de fato eficientes, sua estrutura tem que ser ampliada e melhorada.
Infelizmente, não é isso que vemos. Nos últimos anos, o orçamento para o combate ao trabalho escravo vem diminuindo e não há sequer concursos públicos para aumentar o número de auditores públicos do trabalho, que são os responsáveis pelas fiscalizações.
Enquanto isso, no Congresso Nacional, está em discussão a nova Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para 2023. Esse é o instrumento que permite o planejamento dos gastos do governo para o próximo ano, pelo qual se pode garantir o orçamento para melhorar o combate ao trabalho escravo no Brasil.
Deputados e senadores têm o dever de aprovar um orçamento que garanta os recursos necessários para um efetivo combate às muitas ‘casas abandonadas’ que destroem as vidas de milhares de pessoas pelo país – no campo e nas cidades.