Apesar do aumento recorde do número de mulheres, pessoas negras, LGBT+ e indígenas eleitas para as câmaras municipais nas últimas eleições de 2020, a representação de gênero e raça na política brasileira ainda tem um longo caminho pela frente. O relatório Desigualdade de Gênero e Raça na Política Brasileira, que a Oxfam Brasil e o Instituto Alziras lançaram neste domingo (24/7) durante o Festival Latinidades, em Brasília/DF, mostra que a paridade de gênero nas prefeituras do país poderá levar até 144 anos para ser alcançada, se mantido o ritmo atual – e 20 anos no caso se considerarmos apenas a paridade racial.
O estudo faz uma análise comparativa do perfil das candidaturas e das pessoas eleitas para o poder executivo e legislativo municipal com recorte de gênero e raça entre 2016 e 2020, levando em conta escolaridade, profissão, filiação partidária, distribuição regional e porte de municípios, a partir de dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Os homens seguem no comando de 88% das cidades do país e, em parte, esse resultado é fruto de distorções no processo de recrutamento e seleção de candidaturas pelos partidos. Embora sejam a maioria da população brasileira e acumulem mais anos de estudo que os candidatos homens, as mulheres são menos de 14% das candidatas a prefeito do país. Já nas câmaras de vereadores, elas equivalem a 35% das candidaturas, por influência da política de cotas que determina que as legendas preencham ao menos 30% de suas listas com mulheres.
Mudanças na regra de financiamento de campanhas ajudaram, mas não o suficiente
Em termos raciais, pela primeira vez na história, as candidaturas negras foram a maioria (51,5%) para as câmaras municipais e 45,1% entre os eleitos. Mais de 50% da população brasileira é negra, e 25,4% são mulheres negras. No entanto, há no país apenas 6,3% vereadoras negras. Atualmente, 57% dos municípios do Brasil não têm vereadoras negras e em 978 municípios (18% do total) não há mulheres nas câmaras municipais.
Dados de financiamento de campanhas também foram analisados pelo relatório Desigualdade de Gênero e Raça na Política Brasileira, à luz de mudanças recentes como a proibição do financiamento empresarial, a criação do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) e a decisão da Justiça Eleitoral de 2020 em aprovar as cotas raciais e a dotação de pelo menos 30% dos recursos públicos e do tempo de propaganda eleitoral para as campanhas de mulheres.
Uma análise comparada das eleições de 2016 e 2020 revela que houve maior equivalência entre a proporção de mulheres candidatas a prefeita (14%) e a parcela de recursos arrecadados por suas campanhas (18% do total). Em 2016, as mulheres eram 13% das candidatas a prefeita, mas acessaram apenas 12% da receita total. Já no poder legislativo, as campanhas femininas permaneceram subfinanciadas em termos proporcionais, mas essa distorção foi reduzida significativamente em 2020. As mulheres eram 32,5% das candidatas a vereança com acesso a 21% da receita total em 2016 e passaram a ser 35% dos postulantes ao cargo de vereador em posse de 32% da receita total, uma diferença de 11 pontos percentuais no período.
Fundo público para financiamento de campanha e cotas abriram oportunidades
“Apesar do impacto positivo dessas medidas no aumento da representação de mulheres nas eleições, ainda temos muitos desafios para superar a desigualdade de gênero e de raça na política”, afirma Tauá Pires, coordenadora da área de Justiça Racial e de Gênero da Oxfam Brasil.
Em 2016, havia uma grande dependência de recursos próprios e de doações de pessoas físicas por parte das campanhas, em substituição às doações empresariais que passaram a ser proibidas. Isso gerou vantagens competitivas para candidatos que dispunham de maiores quantias para o autofinanciamento e/ou com melhores condições de ativar determinados tipos de redes sociais e políticas para mobilização de recursos. Já em 2020, o fundo público exclusivo para o financiamento das campanhas eleitorais combinado com cotas de gênero e raça abriu oportunidades para reduzir privilégios e garantir condições um pouco mais equilibradas para as candidaturas femininas.
“Empregos mais precarizados e com remuneração inferior, o enclausuramento da vida doméstica que restringe a possibilidade de estabelecer redes de contatos, a sobrecarga do trabalho de cuidados familiares que retira tempo das mulheres são alguns dos obstáculos enfrentados por elas para mobilizar recursos financeiros para participar da disputa eleitoral. No caso das mulheres negras, esse abismo é ainda maior”, diz Michelle Ferreti, diretora do Instituto Alziras.
Medidas estruturais e de longo prazo são necessárias para melhorar representatividade
A maioria das candidatas negras não têm recursos próprios para financiar suas campanhas, enquanto os candidatos mais ricos (e brancos) não enfrentam esse problema. Em 2016, por exemplo, a arrecadação das campanhas políticas por meio de recursos próprios das candidaturas foi quase o dobro dos recursos partidários – dos quais dependem, em geral, as mulheres negras. Isso se modificou em 2020 por conta das novas regras aprovadas pelo TSE.
A eliminação das desigualdades de gênero e raça na política demandam ainda um conjunto de medidas estruturais e de longo prazo, mas os dados sugerem que o financiamento público, combinado com as novas regras de distribuição proporcional de recursos de campanhas para mulheres, além de cotas raciais, têm efeito positivo para reduzir o abismo financeiro entre as candidaturas, cabendo fortalecer e aprimorar continuamente sua implementação.