O Brasil é mundialmente conhecido entre especialistas como um enorme laboratório de experiências participativas e como um país mercado pela vitalidade da sociedade civil. A fama tem ancoragem nos fatos. A redemocratização no Brasil foi acompanhada por expressiva expansão de conselhos gestores de políticas públicas e de associações civis. Existem hoje cerca de 30 mil conselhos municipais no país. Há mais conselheiros da sociedade civil do que vereadores nas câmaras municipais. As associações civis, por sua vez, cresceram em todas as regiões do país pelos menos 30% e, na virada dos anos 2000, já estavam na casa das 270 mil.
Espera-se que conselhos operem como canais de representação extraparlamentar e que associações vocalizem aspirações e interesses da sociedade civil. Sua expansão, assim, está associada a expectativas de que colaborem para a racionalização das políticas e para fazer escutar a voz de grupos afetados por decisões do poder público. Quer pela inclusão política, quer pela vocalização, ou por sua combinação, espera-se que a expansão de conselhos e associações contribua para a redução das desigualdades mediante políticas mais inclusivas e eficientes.
A desigualdade, todavia, opera em diferentes escalas, e sua redução dentro dos municípios pode aumentar comparativamente a desigualdade entre municípios ou regiões. Assim, cabe perguntar se conselhos e associações têm se expandido privilegiando municípios mais prósperos, adicionando-se à lista de fatores que reproduzem a desigualdade territorial no país, ou se se expandiram de modo a permitir que, pelo menos em princípio, seus eventuais efeitos de inclusão e vocalização ajam como um contrapeso à desigualdade territorial, mesmo que modesto.
A resposta varia não apenas segundo os tipos de conselho ou conjunto de associações civis considerados, mas também, sobretudo, entre conselhos e associações, que apresentam um padrão oposto. Consideremos a evolução dos conselhos municipais ao longo de vinte anos (1988-2009), examinando sua presença entre grupos de municípios(quintis) ordenados de pior a melhor posição no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), um indicador sintético de desigualdade.
Existe uma tendência geral de expansão: se em 1990 havia uma média bem menor do que um conselho por município, em 2008 a média era superior a três conselhos no grupo de municípios com pior IDH e igual a sete naqueles com maior IDH (considerando dezessete diferentes conselhos para os quais existem informações no IBGE). Não apenas a expansão é clara, como também a correlação entre IDH municipal e presença dos conselhos.
A tendência geral, porém, encobre três padrões diferentes de expansão e desigualdade territorial. Um primeiro grupo de conselhos converge para a universalização: saúde, educação, direitos da criança e do adolescente e assistência social, presentes em mais de 90% de todos os grupos de municípios. Tamanha convergência é resultado de fortes mecanismos de indução federal, notadamente aqueles que condicionam o acesso a recursos à criação de conselhos.
O segundo padrão corresponde a um conjunto de conselhos com expansão média e altamente desigual, estimulada por modalidades de indução moderadas ou fracas. Os conselhos de cultura, habitação, direitos do idoso e meio ambiente expandiram-se a partir do final dos anos 1990, mas de modo acentuadamente desigual e sem atingir patamares próximos à universalização. Sua expansão oscila entre 20% e 80% nos grupos de municípios.
O terceiro padrão corresponde a uma expansão baixa e desigual, determinada pelas vicissitudes da política municipal. Ele engloba a maioria dos conselhos: direitos humanos, esporte, juventude, direitos da pessoa com deficiência, da mulher, LGBT, igualdade racial, política urbana, segurança e transporte. Sua expansão é a tal ponto limitada que, em 2009, no grupo de municípios com pior IDH, a média desses nove conselhos era de apenas 0,2 por município.
Por sua vez, associações são muito diversas e há controvérsia a respeito das características que as definem como sociedade civil. Consideremos a evolução territorial de quatro conjuntos de associações, entre 1999-2009, partindo-se, primeiro, de todas as entidades nacionais sem fins lucrativos (ESFL), conforme definidas pelo IBGE. O segundo conjunto de ESFL considerado exclui associações de condôminos e cartórios, que dificilmente seriam entendidas como sociedade civil. No terceiro desconsideramse também partidos políticos, Sistema S e outras associações patronais, profissionais, sindicatos e Igrejas. Por fim, o conjunto menor considera unicamente associações que se dedicam à defesa pública de direitos, as quais correspondem a algo entre 35% e 40% do total de ESFL.
Também nesse caso a tendência geral é de expansão: o número de ESFL por habitante registrou incremento generalizado nos municípios, independentemente de seu nível de IDH. Ocorre uma inversão, todavia, quando suprimidos progressivamente da análise os tipos de associação em alguma medida distantes da ideia de uma sociedade civil dedicada à defesa pública de direitos. Se desconsiderados cartórios e associações de condôminos, não apenas as ESFL mantêm sua tendência de expansão em todos os municípios, mas também praticamente desaparecem diferenças do número de associações disponível para os habitantes dos grupos de municípios segundo seu IDH. Surpreendentemente, a trajetória das associações se inverte parcialmente e elas passam a se tornar mais presentes em municípios de mais baixo IDH se excluídos também sindicatos, associações profissionais e patronais, partidos políticos e Igrejas. A inversão torna-se mais acentuada e nítida se consideramos apenas as ESFL dedicadas à defesa de direitos. Assim, ao longo da década, as organizações que correspondem a uma definição contemporânea de sociedade civil cresceram mais e ganharam comparativamente maior presença nos municípios com menor IDH – representando um terço das ESFL neles presentes, enquanto nos municípios com maior IDH correspondiam a apenas 9%, em 2010.
A trajetória de expansão de conselhos e associações da sociedade civil apresenta um padrão estável: divergente entre ambos e invertido quando considerada sua relação com a desigualdade territorial. Divergente porque todos os tipos de associação se expandiram e, no caso dos conselhos, apenas alguns. Invertido porque os conselhos registram maior presença em municípios de elevado IDH, o oposto daquilo que ocorre com associações de defesa de direitos. Existem, assim, tendências de equalização territorial de duas índoles, institucional e social. De um lado, os conselhos municipais que seguiram uma trajetória de universalização fizeram-no pela presença de forte indução federal; de outro, associações mais próximas da compreensão da sociedade civil seguem padrão oposto à desigualdade socioeconômica territorial, embora por motivos que ainda demandam elucidação.
Este artigo é parte do encarte Desigualdade em Movimento, publicado em parceria com Centro de Estudos da Metrópole (Cem) e Le Monde Diplomatique Brasil. Acesse a publicação completa em: http://bit.ly/olcdem