As religiões não têm olhos só para o “outro mundo”. Ao contrário, como colocou o sociólogo Max Weber, elas possuem interesses ideais e materiais – e se dirigem a “este mundo” para tentar mudá-lo, nele agir ou dele fugir. E isso não decorre apenas das teologias e crenças, mas também dos contornos históricos. Assim, para saber como determinada religião se relaciona com a sociedade é importante indagar se seu culto é permitido ou proibido, se seus membros são maioria ou minoria na população, se tem apoio do Estado, se está bem organizada institucionalmente etc. – fatores que variam enormemente no tempo. Não há apenas uma forma de relação entre religião e realidade social; essas duas partes frequentemente se alternam como causa e efeito.
Estamos atravessando uma transição religiosa no Brasil. Ela vem acontecendo há mais de um século, mas se acelerou nas décadas mais recentes. Dados dos últimos seis censos demográficos evidenciam que há três vetores principais: a) grande queda das religiões tradicionais (especialmente o catolicismo); b) um expressivo aumento e diversificação dos protestantes (neo)pentecostais; e c) um avanço tímido das religiões não cristãs e daqueles que se declaram ateus, agnósticos e afins.
Nesse ínterim, o catolicismo se reinventou diversas vezes. Até 1890 era a religião oficial e parte do Estado brasileiro. A partir de então precisou se organizar como instituição independente. Na década de 1930 aproximou-se novamente do poder central e serviu de grande pilar de ações nas áreas de saúde e educação. A Igreja Católica garantiu um lugar ao sol mesmo quando a laicidade legal já estava instituída. Mas sua força advinha também dos valores enraizados nas práticas da população.
A transição rural-urbana teve impacto profundo sobre o monopólio católico, formando as bases para a pluralização do cristianismo. Cabe diferenciar o protestantismo histórico/reformado (Igreja Lutera,Calvinista, Anglicana etc.) do pentecostal (Assembleia de Deus, Congregação Cristã, Deus é Amor, Universal etc.). O primeiro chegou ao Brasil por meio dos imigrantes europeus no século XIX, principalmente na região Sul, mas careceu do ímpeto proselitista, ficando restrito a comunidades étnicas ou locais (apesar de suas teologias universalistas). Manteve-se como “religião tradicional”, recompondo aqui uma parte do mundo dos imigrantes. O pentecostalismo, por sua vez, veio em diversas ondas ao longo do século XX, inicialmente por meio de missionários estrangeiros. Estilos opostos de protestantismo: os pentecostais são “expansionistas”. “expansionistas”.
Suas crenças, ritos e comportamento também se diferenciam. O protestantismo histórico enfatiza condutas metódicas e sobriedade. É clássica a interpretação weberiana sobre a afinidade de sentidos entre a ética protestante (em particular, do calvinismo) e o espírito do capitalismo: são subjetividades que atribuem valor ao trabalho em detrimento do gozo material. O pentecostalismo também se apoiou em valores do mundo do trabalho, mas seus membros sempre foram caracteristicamente mais pobres e sujeitos a instabilidades. Sua ética econômica se orienta para a providência divina: Deus provê nos momentos de dificuldade – algo mais emocional e menos ascético.
O pentecostalismo oferecia ao migrante rural uma forma de compreender o mundo e o inseria em grupos e relações num ambiente que se tornava cada vez mais anônimo e desconhecido. As inovações rituais proporcionavam apoio e pessoalidade, o que contrastava com o lado ritualizado e impessoal dos ritos católicos. Distante da vida cotidiana, o catolicismo se viu em risco.
A emergência de movimentos de esquerda católicos a partir dos anos 1950 foi uma resposta a essa preocupação com as mudanças sociais. Contudo, a esquerda católica nunca mobilizou maciçamente a população e já na década de 1980 entrou em remissão. Muitos foram os motivos: o Vaticano assumiu posturas mais conservadoras; a redemocratização no Brasil ampliou o espaço da esquerda fora dos âmbitos religiosos; e a ênfase na necessidade de mudança estrutural da sociedade ofuscou as necessidades mais imediatas dos indivíduos.
A Igreja reagiu novamente. A Renovação Carismática Católica (RCC) surgiu como uma “frente pentecostal”, enfatizando o caráter emocional da relação com Deus e a crença em dons e milagres tudo isso sem romper com a hierarquia e a tradição católica. A RCC cresceu bastante de 1980 a 2010, transformando católicos “não praticantes”
em “praticantes”, mas sem tanto êxito em converter externos. Católicos eram 65% da população em 2010, segundo o Censo. Em 1960, eram 93%.
Entre alguns pentecostais, nos anos 1970 emergiu uma nova perspectiva: a teologia da prosperidade (TP), que afirma a possibilidade de gozar neste mundo as benesses materiais proporcionadas por Deus. Esse subgrupo passou a ser identificado como neopentencostal (ex.: Universal, Sara Nossa Terra, Renascer, Mundial do Poder de Deus). A TP incentiva o empreendedorismo e o sucesso individual, e forneceu uma ética econômica para as situações de informalidade que caracterizaram os anos 1980 e 1990, bem como para o aumento do consumo dos anos 2000. No Censo de 2010, os evangélicos somavam 22% da população; eram apenas 4% em 1960.
O declínio católico e o crescimento evangélico são os dois principais movimentos da transição religiosa; porém, ainda são religiões cristãs, bíblicas e monoteístas. O terceiro componente é justamente o crescimento da diversidade e daqueles que não declararam religião alguma. Em bloco, essas categorias são 13% da população (os sem religião são 8%). Apesar da grande importância cultural, o espiritismo kardecista e as religiões afro-brasileiras abarcam muito pouco da população: cerca de 2% e 0,3%, respectivamente. Porém, os kardecistas quase duplicaram seu tamanho absoluto nos últimos dez anos; as religiões afro voltaram a crescer levemente (estavam em queda); e as outras (um conjunto vasto) quase triplicaram.
A transição religiosa tem consequências. Do ponto de vista social, ela muda as bases de sociabilidade, solidariedade e confiança. Do ponto de vista político, altera a formação de preferências e os comportamentos eleitorais. O exemplo mais patente é o avanço pentecostal sentido no crescimento da bancada evangélica na Câmara (hoje são mais de setenta deputados). De fato, ser pentecostal aumenta drasticamente as probabilidades de votar em candidatos de denominações afins. Mas o “voto evangélico” não é unívoco. Por um lado, o vetor religioso impele ao conservadorismo comportamental; por isso, parte dos evangélicos torna-se base da “nova direita”. Por outro, essas pessoas são, em geral, mais pobres, o que as liga a agendas de esquerda.
Fato é que a religião está cada vez mais na esfera pública. Ironicamente, muitos pensavam que o “fim da religião” estava próximo! Poucos anteviram essa importância crescente. Agora, já não é possível ignorá-la.
Este artigo é parte do encarte Desigualdade em Movimento, publicado em parceria com Centro de Estudos da Metrópole (Cem) e Le Monde Diplomatique Brasil. Acesse a publicação completa em: http://bit.ly/olcdem