No início de junho de 2023, o Ministério do Trabalho e Emprego estabeleceu um Pacto Setorial do Café com entidades patronais e de trabalhadores rurais. Segundo o que foi divulgado, o objetivo seria estabelecer medidas que contribuíssem para diminuir a presença de trabalho análogo ao de escravo na cafeicultura de Minas Gerais, buscando principalmente diminuir a informalidade. O pacto é colocado como um protocolo de boas práticas que os envolvidos se comprometem a promover.
Em 2021, a Oxfam Brasil lançou o relatório Mancha de Café e um documentário com o mesmo nome, revelando a grave situação dos trabalhadores e trabalhadoras assalariados rurais no café em Minas Gerais, onde o trabalho análogo ao de escravo é muito presente.
Um dos pontos abordados no relatório Mancha de Café foi a existência de “portas de entrada”, isto é, fatores que facilitariam a ocorrência do trabalho análogo ao de escravo. Alguns dos fatores identificados: informalidade, isolamento do trabalhador na fazenda durante a safra, uso de intermediários na contratação de mão de obra, ausência de negociações coletivas no café em Minas Gerais e falta de transparência sobre os elos das cadeias produtivas.
Uma análise mais detalhada do texto do pacto causa, no entanto, alguma preocupação. Um deles é o fato de o pacto centrar no acesso ao programa Bolsa Família. A suposição seria de que os trabalhadores safristas não querem ser formalizados para não perder o acesso ao benefício. Porém, como até o Banco Mundial já comprovou, não é verdade que quem acessa o Bolsa Família deixa de procurar emprego. Além disso, a longa experiência de trabalho da Oxfam Brasil com entidades do campo e trabalhadores rurais indica que essa é uma falsa suposição. A informalidade é combatida pelos trabalhadores, mas mesmo assim pouco mudou nas últimas décadas – ou seja, a criação do Bolsa Família não fez diferença nos índices de formalização no campo.
Essa suposição estaria ancorada no preconceito contra o programa Bolsa Família, que na verdade é um preconceito de classe contra pessoas em situação de pobreza (que seriam preguiçosas) e, no Brasil, esse preconceito tem origem no racismo, já que a maioria das pessoas mais pobres são negras – aliás, a maioria dos trabalhadores rurais no Brasil e em especial em Minas Gerais, são negros. Essa mesma narrativa era usada com relação às pessoas escravizadas no século 19, e também após a abolição da escravidão no Brasil, contra a população libertada.
No início de 2023 vimos essa mesma falsa narrativa sendo usada pelo Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves para justificar o caso escandaloso de trabalho análogo ao de escravo descoberto na produção de uva e vinho locais. Na oportunidade, culpou-se os beneficiários do programa Bolsa Família por não quererem trabalhar.
Outro ponto preocupante dessa narrativa é culpar os trabalhadores pela informalidade, em vez de responsabilizar os empregadores. A responsabilidade pela formalização da relação de trabalho é 100% do empregador. Mas é comum, no campo, ouvir empregadores acusarem os trabalhadores rurais pela não-formalização. Não existe situação regular e legal de trabalho fora da formalização, e a informalidade é benéfica apenas ao empregador, que economiza e pode exercer seu poder sem limite contra os trabalhadores, que ficam vulnerabilizados.
Quando o trabalhador rural, que recebe um dos salários mais baixos do Brasil e vive em situação de pobreza, diz que não gostaria de ser formalizado, isso é consequência do salário formal ser tão baixo que não garante sua sobrevivência. Qualquer desconto no valor do salário, que é o que acontece quando há formalização, representa uma ameaça de fome. A solução não é a informalidade; a solução é o aumento do salário. A cadeia do café é um dos setores do agronegócio que mais exporta e gera enorme riqueza aos produtores, não justificando, portanto, que seja um dos setores no campo em que a condição dos trabalhadores seja tão ruim.
É preocupante que a narrativa pública em torno do Pacto do Café reforce essas falsas suposições em relação aos trabalhadores rurais e o Bolsa Família. Mas, apesar disso, existem aspectos positivos no Pacto. O principal deles diz respeito à terceirização das atividades-fim nas fazendas. O uso de intermediários para contratar trabalhadores rurais, os chamados “gatos”, sempre foi um dos principais problemas relacionados ao trabalho análogo ao de escravo. Esses “gatos” aliciam trabalhadores de uma região e levam para outra, sob falsas promessas, e lá os trabalhadores ficam presos sem poder voltar para casa, sendo sujeitos a todo tipo de violação de direitos, incluindo o trabalho análogo ao de escravo. Com a reforma trabalhista e a aprovação da terceirização das atividades-fim, esses “gatos” ganharam uma cobertura legal para atuar, o que dificultou a fiscalização.
O Pacto do Café reconheceu que esse tema é um problema e propõem: “Com o objetivo de assegurar um melhor controle sobre o cumprimento da legislação vigente em relação a mão-de-obra utilizada, os representados pelas entidades signatárias serão orientados a contratar diretamente os trabalhadores necessários para o desenvolvimento das atividades-fim, especialmente as de cultivo, colheita, poda, carga e descarga das culturas”.
É muito importante que o agronegócio reconheça e se comprometa a não usar mão-de-obra terceirizada. Esse é um dos elementos que facilitam a ocorrência do trabalho análogo ao de escravo. Por isso é positivo que o Pacto do Café estimule esse tipo de boa prática.
Esse é um primeiro passo, mas outras ações são necessárias para melhorar a situação dos trabalhadores rurais do café em Minas Gerais. No relatório Mancha de Café, a Oxfam Brasil recomendou que supermercados, empresas de café e cooperativas de produtores deveriam:
- Adotar uma política e uma abordagem de devida diligência em direitos humanos, estabelecendo uma estratégia para identificar, prevenir, mitigar e remediar as violações dos direitos humanos nas principais cadeias de fornecimento de alimentos. Este deve ser um documento público;
- Divulgar, regularmente, os fornecedores da cadeia de suas marcas de café até o nível da fazenda;
- Publicar um documento que especifique a abrangência de suas políticas de tolerância zero com relação ao trabalho em condições análogas a de escravo, definindo que seus fornecedores não podem estar envolvidos, de nenhuma maneira, seja na mesma propriedade ou não, seja por subcontratação ou por fornecimento de terceiros, com casos de trabalho escravo;
- Adotar tolerância zero para a informalidade e para a não participação em convenção ou acordo coletivo, para descontos nos salários referentes aos custos de EPIs, de alimentação, de moradia e da ação de intermediários na contratação;
- Estabelecer auditorias não anunciadas nas fazendas fornecedoras de café durante o período da safra;
- Estabelecer um processo de diálogo significativo com os sindicatos de assalariados rurais e incentivar seus fornecedores a apoiarem a atividade sindical nas fazendas, durante o período de safra;
- Estabelecer um compromisso de salário digno (living wage) para os trabalhadores assalariados do café.