O País está diante de um momento crucial. O Plenário da Câmara dos Deputados votará, nos próximos dias, o texto substitutivo elaborado pelo Grupo de Trabalho sobre o PLP 68/2024, que regulamenta a EC 132/2023, correspondente à reforma tributária sobre o consumo. É consensual a necessidade de se aperfeiçoar o direito tributário brasileiro em relação a esta base de incidência, com o ânimo de se implementar uma tributação sobre bens e serviços que garanta elementos como simplicidade, transparência e não cumulatividade plena. Estes objetivos são, em grande medida, alcançados pela reforma.
Há, contudo, um elemento de maior centralidade e urgência em nossa realidade, a exigir uma resposta do Congresso Nacional na tramitação da regulamentação da reforma tributária. Trata-se do enfrentamento das pronunciadas desigualdades que particularizam o Brasil como caso extremo e trágico, em meio às nações de semelhante porte econômico e demográfico.
Malgrado o caráter regressivo dos tributos que incidem sobre o consumo, medidas de mitigação deste atributo estão previstas na Emenda Constitucional 132/2023. Necessitam, porém, de uma regulamentação que supere a timidez observada no texto do substitutivo ao PLP 68/2024. A principal e mais promissora destas políticas, como sugerem diversos estudos e análises ex ante, é a devolução dos valores de IBS e CBS incidentes sobre o consumo das pessoas de baixa renda, conhecida como cashback. O texto que se lê nos artigos 106 e seguintes do projeto prevê que se restitua apenas 20% (vinte por cento) do valor de IBS/CBS suportado pela população inscrita no CadÚnico e com renda familiar mensal per capita de até meio salário mínimo. Esta soma se eleva apenas em relação à CBS incidente sobre energia elétrica, água, esgoto e gás natural (alcançando 50%) e gás de cozinha (equivalente a 100%). É pouco e consideravelmente menos do que as reduções de alíquotas em favor dos serviços consumidos por estratos privilegiados da população.
Uma família abastada que matricula as/os filhos/as em escola particular teria, em razão da redução de alíquota em 60%, um proveito de R$ 16,50 para cada R$ 100,00, considerando-se uma alíquota-base de 27,5%. Assim, pessoas muito ricas, cujos filhos frequentam escolas de elite, com mensalidades de até R$ 8.500,00, recebem, para cada criança, apenas nesta rubrica (à qual se acrescem, certamente, serviços como medicina particular), nada menos do que R$ 1.402,50 em favores fiscais de IBS/CBS. Já uma família pobre, com a renda per capita de R$ 706,00 que a habilita ao cashback, teria apenas R$ 5,5 de devolução para cada R$ 100,00, gastos, considerando- se o valor de 20% e a alíquota-base de 27,5%. Na melhor das hipóteses, portanto, receberá R$ 38,3 mensais por pessoa.
O desenho atual do cashback, somado às exonerações em favor de serviços consumidos pelos mais ricos, permite, como se extrai do exemplo acima, que apresenta apenas um tipo de serviço a beneficiar os mais abastados, uma brutal política de concentração de renda, segundo a qual os pobres se limitam em um tímido teto para o cashback e os ricos se beneficiam de alíquotas privilegiadas em uma lógica regressiva, que os permite ganhar mais à exata medida do caráter luxuoso e elitista dos serviços de educação, saúde, advocacia e similares que consomem.
Há tempo de se aprimorar esse cenário. O mínimo que o Parlamento deve assegurar, com vistas a cumprir o objetivo constitucional de redução das desigualdades sociais, é a ampliação da faixa com direito ao cashback para um estrato mais amplo, atinente a um salário mínimo per capita de renda familiar, além da garantia de devolução de 100% dos valores pagos por estes segmentos a título de IBS/CBS. Para uma renda de um salário mínimo, a transferência seria de R$ 388,30. Este valor é, ainda, muito inferior ao proveito obtido pelos mais ricos em exemplos como o que se apresentou acima. Trata-se de medida moderada, adequada ao ordenamento jurídico e ainda insuficiente para lidar com a regressividade inscrita no desenho da nossa tributação sobre o consumo. A mesma vontade política que permitiu, desde a EC 132/2023, a concessão de regimes beneficiados em favor do modo de vida das classes mais altas deverá, neste momento, ser estendida para que o cashback devido às pessoas mais pobres se concretize como uma efetiva política pública de transferência de renda, antes de dispositivo preponderantemente retórico.
Além do socialmente necessário e constitucionalmente imperativo aumento do cashback, é preciso lembrar o entendimento uníssono da literatura econômica, a informar que a mitigação das desigualdades tem como condição necessária um progressivo e ousado sistema de tributação da renda, diferentemente do que acontece no Brasil. Não é por outra razão que o artigo 18, I, da Emenda Constitucional 132/2023, impôs ao Poder Executivo a obrigação de enviar, até o dia 20 de março de 2024, “projeto de lei que reforme a tributação da renda, acompanhado das correspondentes estimativas e estudos de impactos orçamentários e financeiros”. O governo, porém, ainda não cumpriu este dever constitucional.
Aumento do cashback no substitutivo ao PLP 68/2024 e imediato envio da proposta de reforma da tributação sobre a renda: duas medidas viáveis e urgentes para que o país enfrente as suas intensas desigualdades.
Assinam o manifesto:
Oxfam Brasil
Inesc
Observatório Brasileiro do Sistema Tributário
Instituto Equit
Instituto Democracia e Sustentabilidade
Ordem Brasileira dos Advogados
Act Promoção de Saúde
Gestos
Universidade Federal da Paraíba
Instituto Cidades Sustentáveis
Advocacia Popular
Instituto Ethos
Aliança Nacional Lgbti+
Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida
Sinergia Cut Campinas
Instituto Piracicabano de Estudos e Defesa da Democracia
FADDH – Frente Ampla Democrática pelos Direitos Humanos
Abrasco – Associação Brasileira de Saúde Coletiva
Nzinga Coletivo de Mulheres Negras
PNBE – Pensamento Nacional das Bases Empresariais
Instituto Beja
Plataforma Justa
CPT – Mossoró/RN
Associação Alternativa Terrazul
World Animal Protection Brazil
Movimento dos Pequenos Agricultores
Instituto do Desenvolvimento Sustentável Baiano
Federação dos Trabalhadores Rurais Assalariados e Assalariadas do Rio Grande do Norte
Universidade Federal de Goiás
Conectas Direitos Humanos
Campanha Nacional pelo Direito à Educação
Confederação Nacional Assalariados Rurais – CONTAR
Coletivo de Mulheres Marília
Coletivo de Mulheres Garça – SP
Galvão Villani, Navarro, Zangiácomo e Bardella Advogados
Grupo de Pesquisa Tributação e Gênero da FGV Direito – SP