Há pouco mais de 10 anos, a tragédia de Rana Plaza chocou o mundo. Rana Plaza era um prédio em Bangladesh que abrigava várias confecções e oficinas de costura. Ele colapsou devido às más condições estruturais da edificação, matando mais de 1.100 pessoas e deixando quase 3 mil pessoas feridas gravemente.
No dia anterior ao colapso, grandes rachaduras apareceram no prédio, mas o trabalho nas confecções e oficinas de costura não foi interrompido. Quem trabalhava no prédio – mulheres em sua maioria – recebeu ordens para que continuassem o trabalho. Esse tipo de comportamento de risco ajudou a evidenciar a enorme pressão exercida sobre as confecções pelas grandes marcas de roupas, e também a relação exploratória com as trabalhadoras. Diversas empresas globais, como o Carrefour França, C&A da Bélgica, Benetton da Itália, entre outras, compravam as roupas produzidas em Rana Plaza.
Divisão internacional do trabalho
Apesar de o Brasil também ter um setor de confecção com inúmeros problemas trabalhistas, as principais lições desse caso ocorrido em Bangladesh ficam para o agronegócio brasileiro. Isso porque a tragédia de Rana Plaza é um exemplo típico de produção em um país em desenvolvimento voltada para o atendimento dos países mais ricos por meio de condições de trabalho muito ruins, em que a maior parte da riqueza gerada não fica no país de origem – e muito menos com os trabalhadores. Isso é o que se chama de “divisão internacional do trabalho“, quando há uma posição restrita para os países do Sul no sistema internacional de comércio, um papel subalterno que mantem esses países no subdesenvolvimento.
Ou seja, os países em desenvolvimento suprem o Norte com insumos baratos e sofrem as consequências, como pobreza, exploração e degradação ambiental. Esse é o paralelo com o agronegócio brasileiro, basta lembrarmos dos casos de desmatamento e trabalho análogo à escravidão em propriedades rurais, enquanto o setor lucra bilhões com a exportação das commodities agrícolas para os países mais ricos, que então processam esses produtos e os revendem por um valor bem maior.
Um exemplo: o Brasil é hoje o maior produtor e exportador de café in natura do mundo, mas a Europa é quem mais exporta café processado.
Responsabilização e comprometimento
Após Rana Plaza, grandes empresas de marcas de roupa foram cobradas e responsabilizadas pela situação absurda encontrada na fabricação de seus produtos. Um acordo foi feito à época, e várias empresas se comprometeram a implementar com seus fornecedores várias práticas para evitar novas tragédias como a de Bangladesh, além da criação de um fundo para indenização das vítimas. No entanto, nem todas as empresas que compravam as roupas produzidas em Bangladesh aderiram ao acordo. E, após 10 anos, essas ações que se baseavam no compromisso voluntário das empresas se mostraram limitadas. Houve algum avanço, mas não uma mudança transformadora na situação geral da produção de roupas em Bangladesh.
Esse é o contexto que vivemos hoje no debate sobre a responsabilidade das empresas com os direitos humanos. Há um esgotamento das iniciativas de autorregulação e práticas voluntárias. Certificações, pactos e plataformas cumprem um certo papel, mas se mostram limitadas na hora de apresentar resultados que signifiquem efetiva mudança na vida das pessoas. A discussão avançou: queremos iniciativas regulatórias, o avanço de legislações nacionais de devida diligência e de legislações internacionais que permitam a responsabilização das empresas.
Legislação e regulamentação
A lei alemã de devida diligência em direitos humanos entrou em vigor em janeiro deste ano, e o primeiro caso apresentado refere-se exatamente a empresas que compram de Bangladesh e estão ligadas a violações de direitos – a ação menciona a Amazon e a Ikea, entre outras. A lei francesa é mais antiga e casos relacionados ao Brasil já foram apresentados contra o McDonalds e o Casino (Carrefour).
No âmbito internacional, temos as diretivas da União Europeia sobre devida diligência em direitos humanos e sobre desmatamento sendo discutidas, duas legislações que buscam regular a responsabilidade das empresas sobre suas cadeias de fornecimento. Também temos a discussão na ONU do Tratado Vinculante sobre Empresas Transnacionais e Direitos Humanos.
A tendência do momento é a aprovação de novas regulações e legislações no tema. No Brasil, o PL 572-2022 busca criar um marco sobre direitos humanos e empresas, definindo responsabilidades das empresas e um sistema de apoio às pessoas que têm seus direitos violados. A proposta é interessante e junta a noção de devida diligência que avança na Europa com o apoio às vítimas de maneira similar ao Código de Defesa do Consumidor. É muito importante para o Brasil avançarmos nesse sentido. Após 10 anos do caso de Rana Plaza, a busca pela responsabilização das empresas pelo que ocorre no início de suas cadeias de fornecimento segue forte – agora por meio das novas legislações sobre devida diligência em direitos humanos.
Essa é mais uma lição que Rana Plaza traz para o Brasil: as empresas envolvidas na exportação de commodities primárias que estão sistematicamente ligadas a casos de trabalho escravo, conflitos por terras e desmatamento muito em breve devem passar a figurar como partes em inúmeras ações na Europa.