São quase 40 milhões de pessoas na miséria, mais de 14 milhões desempregados, cerca de 10 milhões em situação de fome, quase 8 milhões de infectados pela covid-19 e estamos chegando a 200 mil mortos pela doença. Os números são inequívocos: a pandemia de covid-19 e a crise brasileira econômica escancararam as desigualdades e estão impactando a vida de milhões de brasileiros.
Por trás de tantos números e estatísticas, há histórias de vida que não podem ser esquecidas. São pessoas que lutam para sobreviver, fugir da fome e da pobreza extrema, são jovens, mulheres, trabalhadoras e trabalhadores, comunidades inteiras que, na ausência de um Estado que lhes ofereça o apoio e assistência necessários, se equilibram como podem para manter uma vida com um mínimo de dignidade.
Em 2020, a Oxfam Brasil e diversas organizações parceiras promoveram uma ação humanitária emergencial para apoiar jovens e suas famílias em situação de vulnerabilidade em quatro grandes cidades do país — Recife, Rio de Janeiro, São Paulo e Distrito Federal.
Nessa ação, doações foram arrecadadas para oferecer a cada uma dessas famílias um vale-alimentação durante quatro meses para que elas pudessem se manter em meio à pandemia. A todas e todos que doaram para a nossa ação emergencial, nosso muito obrigado!
Aqui estão as histórias de algumas das pessoas beneficiadas.
O sonho adiado de um confeiteiro
Matheus Lopes tem 18 anos, é carioca e morador do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. É voluntário da ONG Educap (Espaço Democrático de União, Convivência, Aprendizagem e Prevenção), fundada em 2008 por moradores de diferentes comunidades do Complexo do Alemão. A Educap promove cursos de reforço escolar, corte e costura, gastronomia, ações de promoção de direitos humanos, saúde e defesa da cidadania.
Matheus trabalha em uma padaria na Zona Norte da cidade, onde também trabalha sua mãe. É o seu primeiro emprego. Ele se alistou no Exército e hoje aguarda a convocação. Mora com a mãe, o padastro e duas irmãs e três irmãos. Da família, apenas ele e a mãe trabalham. O padastro está desempregado.
Apesar das dificuldades enfrentadas com a chegada da pandemia de coronavírus, Matheus segue estudando. Está no primeiro ano do ensino médio. No início da pandemia, acompanhava as aulas online, mas depois teve problemas com a conexão de seu celular e passou a ir na escola (pública, que fica no bairro Nova Brasília, no Complexo do Alemão) para pegar as apostilas de estudo e fazer as lições em casa.
O sonho de Matheus é ser confeiteiro. Está procurando um curso para fazer, mas hoje não tem os recursos financeiros para isso. “Se eu pudesse realizar um sonho hoje seria o curso de confeiteiro. Eu gosto muito de fazer bolo. Isso iria mudar minha vida, poderia ganhar meu dinheiro e ter as coisas que eu sempre quis e nunca pude ter.”
Tranças e apoio para jovens negros fugirem de sub-empregos
Moradora de uma comunidade em Acari, na zona norte do Rio de Janeiro, Jhenifer Raul tem 25 anos e mantém um salão de beleza com a esposa. Sua especialidade é fazer tranças nas clientes. Com a pandemia, o movimento do salão caiu bastante, “porque ninguém sai de casa, então arrumar o cabelo deixou de ser prioridade”.
Começou a fazer tranças em 2016 e, nesse mesmo ano, criou juntamente com outros jovens da comunidade a Coletiva Magia Negra, que nasceu de uma necessidade de criar um espaço alternativo para os jovens poderem estudar, criar e desenvolver suas habilidades em trabalhos diversos, “e não ter que se submeter ao sub-emprego”.
“Não tínhamos ensino médio completo, e começamos a produzir coisas para vender — cadernos, bijuterias e turbantes.”
Jhenifer e os demais jovens da Coletiva Magia Negra também faziam militância, dando palestras sobre emprego para jovens da comunidade, promoviam atividades culturais e palestras sobre igualdade racial. Eram chamados para dar palestras e oficinas em escolas da região.
Com ensino médio completo, Jhenifer tem vontade de fazer vestibular para estudar gestão e economia, e assim conseguir melhorar o seu salão de beleza. Mas antes quer estabilizar o negócio e aumentar a clientela.
Com isso, poderá realizar outro grande sonho de sua vida: ter uma casa própria para poder trazer o filho para morar com ela — ele hoje vive com a avó na Região dos Lagos. “Lá onde ele está com a avó, os números (de contaminação) são menores, aqui o pessoal não está tomando cuidado nenhum. Não queria que ele ficasse aqui por conta do risco de pegar a doença.”
“Estamos todos juntos nessa e temos que sair juntos também”
Débora Aguiar tem 26 anos e é moradora de uma favela na periferia do Recife, onde vive com o companheiro e as duas filhas. Por causa da pandemia, as crianças, que pertencem ao grupo de risco (têm problemas respiratórios), foram morar com suas famílias paternas.
Débora e seu companheiro estão desempregados e, se não fosse o auxílio emergencial do governo e a ajuda da Oxfam Brasil, já teriam sido despejados porque estavam com dificuldades de pagar o aluguel.
Apesar da situação difícil, Débora ainda encontra tempo para fazer trabalho voluntário, distribuindo cestas básicas para pessoas que, assim como ela, estão em situação de vulnerabilidade. “Nós não temos muito, mas não podemos negar ajuda a quem também está em dificuldades. Todo mundo aqui se ajuda.”
A jovem recifense pondera que antes da chegada da covid-19, mesmo com informalidade, existia a certeza de que alguma renda chegaria. Agora, a falta de perspectiva e de possibilidade de trabalho é o que mais a assusta e preocupa.
“A gente tinha antes a certeza de que a gente ia poder fazer um corre, vendia uma água no sinal ou no ônibus. Com a pandemia, a gente se viu dentro de casa, sem poder sair. E sem renda, veio a fome, a falta de gás, a falta de dinheiro para pagar o aluguel…”
A dura realidade faz com que ela considere difícil sonhar. Mas não impede dela fazer a sua parte e agir para ajudar quem também está em situação de vulnerabilidade. “É uma questão de sobrevivência coletiva. Estamos todos juntos nessa. E vamos sair juntos também.”
Sem emprego, sem renda e sem água
Após um relacionamento abusivo, Jullyane Monte, de 26 anos, foi viver com seus 3 filhos na casa da irmã que fica na favela Brasília Teimosa, na zona sul de Recife. A única renda da casa é o Bolsa Família que ela recebe. Sua mãe, que é cuidadora de idosos e tem 63 anos, é quem arca com o aluguel da casa onde moram.
Após diversos relatos de pessoas que contraíram coronavírus na sua vizinhança, Jullyane suspeitou que um de seus filhos também tivesse ficado doente, mas não pode confirmar por falta de acesso ao teste.
A realidade de Jullyane é muito parecida com a das pessoas que estão ao seu redor. A comunidade vive da pesca e de trabalhos informais ligados ao turismo. Mas com a pandemia, tudo parou, afetando diretamente suas vidas. “Ninguém consegue mais ter dinheiro para nada.”
Outro problema que agrava a situação da família de Jullyane e de todos em sua comunidade é a constante falta d’água na região. Além de ser item básico para a vida das pessoas, o acesso à água é também fundamental na prevenção do coronavírus.
“Aqui é muito comum a gente ficar até uma semana sem água. Muitos têm poço em casa mas não é suficiente.”
“A prioridade é sobreviver e dar uma vida melhor para meu filho”
Depois de dar à luz ao seu filho, em março de 2020, Tatiana dos Santos, de 24 anos, saiu do barraco onde vivia com o marido, na Cidade Estrutural, e foi morar na casa da sogra, na mesma comunidade. Antes da pandemia, vivia de bicos e trabalhos temporários, além do Bolsa Família. Mas devido a complicações na gestação, não pode mais trabalhar e a situação se complicou.
Nas primeiras semanas da pandemia, o fluxo de pessoas circulando pela comunidade diminuiu bastante, mas por necessidade de trabalhar — e também um pouco de descaso, afirma Tatiana —, as pessoas voltaram pouco a pouco para as ruas. “Muita gente não tinha outra opção. Era isso ou morrer de fome.” A sogra de Tatiana, por exemplo, é empregada doméstica e continua trabalhando — os patrões vão buscá-la de carro.
Tatiana tem tentado se manter positiva, apesar de acreditar que ainda vai demorar para o cenário melhorar. Ela tem como sonho poder terminar de construir uma casa que ela e o marido estão erguendo nos fundos do terreno da casa da sogra, e dar uma vida melhor para o filho. Mas tem consciência de que isso ainda vai levar muito tempo. “Enquanto estivermos nessa situação, a prioridade é sobreviver”.
Criação de galinhas para sobreviver
Rogério de Souza tem 28 anos e vive com sua esposa na Cidade Estrutural, no Distrito Federal, em um barraco de madeira. Antes da pandemia, trabalhava como educador social dando aulas de dança em uma escola por meio período, e recebia R$ 500,00 como remuneração. Com a chegada da covid-19, teve que parar com as aulas e passou a viver do auxílio emergencial do governo e da ajuda emergencial da Oxfam Brasil.
Rogério é pai de uma menina de 6 anos, fruto de um relacionamento anterior. Sua mãe mora sozinha e conta com ele para fazer suas compras e cuidar da sua casa.
Para tentar ajudar na alimentação, ele e a esposa contam com a distribuição de cestas básicas que algumas organizações oferecem na comunidade e criam galinhas no quintal: “Depois da pandemia, a gente organizou esse espaço aqui no quintal para criar nossos bichos, e pedimos sobras de comida para os vizinhos para ajudar a alimentar as galinhas.”
Rogério não paga aluguel porque mora numa ocupação, mas as dificuldades são imensas. O acesso à água, por exemplo, é bastante precário. Ainda assim, a família de Rogério está conseguindo manter as medidas de prevenção contra o coronavírus. No entanto, essa não é uma realidade para a maioria das pessoas de sua comunidade, afirma. Muitos saem de casa para conseguir alguma renda nas ruas.
Apesar de todas as dificuldades, Rogério acredita que essa crise tem despertado solidariedade nas pessoas. “Ajudar o próximo é uma forma de cura”, afirma.
Refúgio contra a pandemia na música e na escrita
Mulher negra de 27 anos, Jainah Souza mora com seus filhos, de 2 e 10 anos, em Ceilândia, no Distrito Federal. Antes, morava com a família em um lar abusivo do qual conseguiu sair com a ajuda de amigos. Antes da pandemia, ganhava seu sustento vendendo doces e como trançadeira. Hoje, só recebe um ou outro cliente para trançar cabelo — e ela faz o serviço com medo de se contaminar.
Jainah sobrevive hoje com uma pensão de menos de 1 salário mínimo que seus filhos recebem do pai. Conta também com o apoio de organizações locais e cestas básicas distribuídas na região. “Mas não é suficiente. A comida acaba no meio do mês, e eu tenho que me desdobrar para me manter e manter minha família.”
A jovem, que antes da pandemia fazia acompanhamento psicológico e recebeu um diagnóstico de princípio de Transtorno Bipolar, afirma que tem sido muito difícil ficar isolada com duas crianças em casa. As vezes sai para caminhar com elas, mas sempre com medo de contaminação. “É impossível evitar que elas toquem em objetivos e lugares. Dá um medo grande.”
Para passar o tempo, Jainah tem buscado refúgio na música e na escrita. E aguarda dias melhores, ainda que saiba que as medidas de retomada da economia não vão ajudar muito os mais pobres. “Nós sempre somos os mais prejudicados.”