Historicamente, são as mulheres as responsáveis pelas funções de cuidado em nossa sociedade. Na administração das casas, na criação dos filhos, nos cuidados com os idosos e doentes, na área da saúde, são elas que assumem a linha de frente. Não é diferente no enfrentamento da pandemia da Covid-19.
Apesar de tradicionalmente absorverem as funções de cuidado, é injusto dizer que essa é uma vocação feminina, principalmente se lembrarmos que, em muitos casos, todas essas responsabilidades recaem sobre as mulheres por pura falta de opção. Os homens, em geral, não repartem essas atividades.
Prova dessa falta de escolha está justamente no fato de que, muitas vezes, o trabalho de cuidado não é remunerado. Evidenciamos isso em nosso relatório “O Vírus da Desigualdade“, lançado em janeiro às vésperas do Fórum Econômico Mundial, em Davos (Suíça).
No Brasil, por exemplo, 90% do trabalho de cuidado é realizado informalmente pelas próprias famílias. Desses 90%, quase 85% é feito por mulheres. Quando o trabalho doméstico é remunerado, existe uma diferença considerável entre homens e mulheres. “Em média, uma mulher no emprego doméstico no Brasil ganha 78,44% do rendimento de homens que exercem as mesmas funções.”
O trabalho doméstico, mesmo quando remunerado, muitas vezes é informal. Essa tendência à informalidade faz com que ainda seja comum encontrarmos, no Brasil, pessoas que executam trabalho doméstico remunerado, porém, sem registro em carteira e com remuneração inferior à um salário-mínimo. Segundo dados levantados em nosso relatório, “as mulheres que não tinham carteira de trabalho assinada receberam, em 2018, R$ 707,26 ao passo que para as formalizadas esse valor foi de R$ 1.210,94”.
O combate à pandemia dentro dos hospitais
O relatório “Covid-19: Um Olhar para Gênero” do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), revela que 70% da força de trabalho da área da saúde no mundo são compostos por mulheres. Aqui no Brasil, os números não são diferentes. De acordo com o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), “65% dos seis milhões de profissionais do setor são do sexo feminino – em áreas como fonoaudiologia, nutrição e serviço social elas ultrapassam 90% de presença, e 80% em enfermagem e psicologia”.
Se levarmos em consideração somente as profissões de médico, agente comunitário, técnico de enfermagem e auxiliar de enfermagem, as mulheres representam 78,9% desses postos, segundo dados levantados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) 2020. E essas funções são, muitas vezes, desvalorizadas pela sociedade.
Segundo o estudo “Demografia Médica”, da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), posições “tradicionalmente femininas” na área da saúde tendem a serem vistas como “menores”. As mulheres têm menos chances de chegar ao topo salarial e estão nos patamares mais baixos de remuneração no Brasil: 80% delas recebe até US$ 7.175, enquanto 51% dos homens recebe acima deste valor.
Também é preciso ponderar que toda essa presença em ambientes hospitalares, quando o assunto é a pandemia da Covid-19, resulta em maior risco de contágio e de mortes. Há também muita pressão psicológica sobre as mulheres, que transborda para as suas casas, onde, em muitos casos, têm que exercer segundas e terceiras jornadas, dessa vez no cuidado do lar e dos familiares.
O combate à pandemia depende de organização
Não é só nos hospitais e nos lares que as mulheres são protagonistas no combate à pandemia. Em diferentes tipos de comunidades, quando o Estado não assume o seu papel, são as mulheres que fazem o possível para auxiliar quem está ao seu redor.
O caso da líder indígena Watatakalu Yawalapiti, de 40 anos, que é coordenadora do departamento de mulheres da Associação da Terra Indígena do Xingu (Atix Mulher), é um ótimo exemplo. Watakalu já tinha perdido quatro familiares por conta do coronavírus em setembro de 2020, quando foi tema de artigo publicado no site da National Geographic.
Ao falar sobre o período e suas perdas, a líder afirmou: “Estamos de luto e lutando. Luto, luta, luto, luta. E parece que a gente não descansa, não para nunca” e “Meu cacique [Aritana Yawalapiti, 71 anos] morreu e, na mesma hora, tinha parentes me ligando pedindo para enviar material para eles. Estou chorando e andando.”.
À época da entrevista, mesmo diante de todas as perdas e da possibilidade de se infectar com o vírus, Watatakalu, que é mãe de três filhos, decidiu se afastar da sua família para contribuir no recebimento, administração e distribuição de doações enviadas para as comunidades da Terra Indígena do Xingu, no estado do Mato Grosso.
Por que as mulheres correm mais risco?
A Oxfam Brasil publicou um artigo com as principais razões que fazem com que as mulheres sintam de maneira mais intensa os impactos da Covid-19. Entre os motivos estão: o crescimento da violência doméstica em decorrência do isolamento, a desigualdade de gênero na divisão dos trabalhos de cuidado e o fato das mulheres serem maioria nas equipes hospitalares, entre outras questões.
Mais do que entender as razões de os impactos serem maiores entre as mulheres, é preciso conhecer o que pode ser feito para mudar essa situação. Demos nossa contribuição no artigo “6 razões pelas quais o impacto do coronavírus sobre as mulheres é maior“. Entenda o que você pode fazer para contribuir com a mudança desse cenário.