Ter alguém na família que precisa de cuidados é algo que pode acontecer com qualquer um. E isso transforma a vida não apenas de quem passa pela doença, mas também de quem cuida. Especialmente as mulheres, porque o trabalho de cuidado é essencialmente feminino.
E a jornalista Bia Barros, de 45 anos, sabe bem disso. Há 25 anos, veio de Fortaleza (Ceará) morar em São Paulo para fazer vestibular. Com o avanço da doença de sua mãe, Maria Helena, diagnosticada com Alzheimer, teve que trazê-la para morar com ela na capital paulista, afetando diretamente sua vida e carreira.
Assim, como o Alzheimer é uma doença mental irreversível e progressiva, a mãe de Bia ficou cada vez mais dependente. Até um ponto em que Bia não mais conseguia conciliar o trabalho de cuidado que tinha com a mãe e sua carreira.
“As empresas entendem até a segunda página. Quando começa a afetar a produtividade, aí você acaba saindo do jogo”, lamenta Bia, que passou a fazer trabalhos temporários como ‘freelancer’ para poder ter tempo de cuidar da mãe. Mas isso não resolveu a questão. “Ainda assim é muito difícil. No auge da minha vida produtiva, tive que abdicar muito da carreira. E os custos vão ficando muito altos para quem cuida – só de remédio eu gastava mais de R$ 3 mil por mês. O impacto financeiro na vida é muito forte, implicando num processo de pauperização muito violento.”
Divisão sexual do trabalho de cuidado
O trabalho de cuidado quase sempre fica a cargo das mulheres. Existe uma divisão sexual do trabalho que coloca as mulheres como cuidadoras natas – uma visão não apenas machista, de que mulheres nascem com um ‘instinto’ para esse trabalho, mas também negligente, porque ignora a necessidade de se ter conhecimento e estrutura para isso.
A questão do trabalho doméstico e cuidado não remunerado no Brasil já foi tema é tema da publicação Empoderamento econômico das mulheres no Brasil, lançada pela Oxfam em 2018.
E em um contexto em que a população idosa está crescendo, como mostram os dados do IBGE, a atenção com esse tema é ainda maior. Nem todas as famílias podem contar com uma instituição especializada em cuidados com idosos. Dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostram que apenas 30% dos municípios brasileiros (cerca de 1.500) contam com instituições desse tipo e elas estão localizadas, em sua maior parte, na região Sudeste do país.
Assim, 90% do trabalho de cuidado é feito informalmente pelas famílias – e desses 90%, quase 85% é feito por mulheres. Mas cuidar exige conhecimentos específicos sobre a doença, tempo para se dedicar ao paciente e dinheiro para os altos custos com assistência médica e medicamentos.
Adoecendo também
O que pouco se fala é que quem cuida acaba adoecendo também. Nesse ciclo de abdicar da vida pessoal e profissional, do acúmulo de dívidas, do medo e da solidão, muitas cuidadoras acabam desenvolvendo depressão.
E com Bia não foi diferente. Hoje ela faz acompanhamento psiquiátrico, mas nem todas as mulheres que passam por esse processo conseguem o apoio necessário.
Essa experiência com a doença da mãe inspirou o livro Madalena, Alice, lançado em 2018.
“Às vezes eu sentia muito medo da minha mãe. E nunca ninguém me disse que iria chegar um momento em que você vai ter medo. Minha mãe chegou num ponto de muita agressividade, estava alucinando, eu era uma ‘bandida’ para ela, ela achava que estava num cativeiro. Então achei importante compartilhar essa experiência, para contar um pouco esse lado B do cuidado. Mostrar o que é essa rotina, o que acontece com as mulheres que cuidam, como é perverso em muitos sentidos. É uma experiência muito solitária e muito dura.”
Caminhos possíveis
A Organização Mundial de Saúde (OMS) aponta que o número de pessoas com doenças demenciais, como o Alzheimer, deve triplicar até 2050. Precisamos de políticas públicas que deem conta do atendimento a esse grande número de idosos, mas também para quem cuida deles.
Dados do IBGE mostram que no Brasil, enquanto a mulher trabalha de 6 a 8 horas por dia no trabalho de cuidado, o homem trabalha entre meia e duas horas. E as mulheres seguem com essas funções até o fim da vida.
Assim, é importante a gente repensar o que a gente está fazendo com esse contingente de mulheres que estão perdendo a sua capacidade produtiva, a sua vida, pessoal e profissional, envelhecendo à margem.
“Ser cuidadora é um processo muito solitário, é um processo extremamente perverso para as mulheres e para as famílias. Temos que pensar na perspectiva de gênero, de raça e de classe, porque esses recortes são importantes para entender os processos de envelhecimento e os cuidados necessários” comentou Bia.
Algo que parece muito simples, mas que é complexo na prática é o direito de escolher, principalmente quando falamos de mulheres. As que desejam seguir com suas carreiras precisam de centros de acolhimento especializados para seus doentes e as que querem cuidar em casa precisam ter esse trabalho valorizado e remunerado.