A fome no mundo é uma questão grave que deve permanecer no centro das discussões entre os países — é inadmissível que em um planeta onde a produção poderia alimentar toda a população, milhões de pessoas ainda morram de fome.
A erradicação da fome integra os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, mas com a pandemia causada pela Covid-19, a expectativa é que o número de pessoas em situação de insegurança alimentar, desnutrição e subnutrição aumente.
A fome tem ligação direta com todas as formas de desigualdade, mas também pode ser potencializada por fatores climáticos, guerras e conflitos, poluição, escassez hídrica, pragas, degradação do solo e até desinteresse político e falhas de governança.
Neste artigo, você entenderá a relação entre as desigualdades e a fome, como a cultura do desperdício age ativamente no aumento da miséria, os motivos pelos quais o Brasil se tornou um dos epicentros da fome no mundo e o que fazer para minimizar esse problema em nossa sociedade.
Pilares da desigualdade e a sua contribuição para a fome no mundo
A desigualdade existe em muitas dimensões, mas as principais estão relacionadas à renda e riqueza, educação, saúde e política. Entretanto, a desigualdade que mais compromete o desenvolvimento humano é a econômica.
A desigualdade de renda e riqueza está fortemente relacionada a outras formas de desigualdade, todas com causas e consequências semelhantes.
Em relação à saúde, por exemplo: uma criança que nasce em um país com um IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) ruim, terá inúmeras vezes mais chances de morrer precocemente se compararmos com países bem estruturados nesse aspecto.
Além disso, países com maior acesso à educação tendem a manter menores taxas de desigualdades, uma vez que as oportunidades são para todos são mais equiparadas. Mas como associar a fome à desigualdade?
A relação causal entre a fome e as desigualdades, representada pela alta concentração de renda e riqueza, está no fato de haver pessoas em estado crítico de insegurança alimentar em locais sem problemas de abastecimento, o que sugere que a fome no mundo também é uma questão sociocultural e política.
Logo, a ela tem relação direta com a má distribuição de renda e riqueza, mas também com a falta de acesso à educação que, em longo prazo, poderia aumentar as oportunidades de mobilidade intergeracional, com a falta de políticas públicas e de representatividade em cargos legislativos e até por aspectos sobre os quais não temos controle — nacionalidade, gênero e raça, por exemplo.
As formas da fome
A fome no mundo pode acontecer de formas diferentes, ser temporária, transitória ou crônica. A insegurança alimentar, por exemplo, é definida pela indisponibilidade de alimentos saudáveis e de valor nutricional adequado para o desenvolvimento do ser humano.
Já a má nutrição ocorre com o consumo inadequado de nutrientes e pode ser classificada como desnutrição — absorção deficiente de nutrientes — ou subnutrição, o estado mais crítico, caracterizado pela insuficiência de alimentos que permitiriam ao indivíduo obter a energia mínima necessária para uma vida saudável e ativa.
A fome é uma vertente da subnutrição e manifestada de forma crônica, ou seja, ocorre em longo prazo.
A cultura do desperdício de alimentos e seus reflexos
A produção mundial de alimentos é muito superior à demanda de consumo e isso não fecha a conta para a erradicação da fome. Os motivos pelos quais isso ocorre é, no mínimo, revoltante — grande parte dos alimentos produzidos é desperdiçada em alguma fase do ciclo de produção ou consumo.
O Brasil, por exemplo, é um dos maiores produtores agrícolas do mundo e exporta seus produtos para vários países. Grande parte dessa produção é transformada em ração animal, mas os brasileiros sofrem com a desigualdade na distribuição de alimentos e a fome de forma cruel.
Isso porque o volume de produtos exportados anualmente seria suficiente para alimentar toda a população do país, entretanto, não existem políticas públicas que obriguem que parte dessa produção seja destinada ao consumo interno.
Com o interesse na lucratividade das commodities, os produtores rurais investem milhões na agricultura, muitos em processos que comprometem o meio ambiente, e fomentam um mercado consumidor majoritariamente formado pelas classes mais altas (a partir da carne animal produzida com as rações da produção agrícola).
Resumidamente, a população mais pobre “compete” com os animais pela comida produzida em solo brasileiro. Ainda, o consumo de alimentos das pessoas de baixa renda é limitado pelo desabastecimento e a lei do mercado é dura: em situações de pouca oferta e muita demanda, os preços aumentam e isso impede que as pessoas pobres tenham uma dieta nutricional adequada.
O desperdício de alimentos potencializa o problema e ainda prejudica ainda mais a preservação ambiental, uma vez que quanto mais é preciso produzir para atender as “exigências do mercado”, mais são utilizados recursos hídricos, insumos e defensivos agrícolas que muitas vezes empobrecem o solo e degradam o meio ambiente.
A produção em larga escala também gera desmatamento e tudo isso em longo prazo agrava ainda mais a situação da fome no mundo — segundo o artigo “Impacts of rising temperatures and farm management practices on global yields of 18 crops”, publicado na revista Nature Food, as mudanças climáticas podem reduzir significativamente a produção agrícola global.
Ainda, segundo os pesquisadores, as mudanças climáticas poderão prejudicar a capacidade de manutenção das safras e ainda potencializar o problema de insegurança alimentar enfrentado pelos países mais pobres do mundo.
O desperdício de alimentos ocorre em função da perecibilidade, que muitas vezes são embalados, manuseados e transportados inadequadamente. Como se não bastasse, alguns mercados consumidores rejeitam alimentos com aparência ruim, apenas por questões estéticas já que muitas vezes eles estão aptos para consumo.
O brasileiro também desperdiça cerca de 10% dos alimentos que compra durante o preparo, após as refeições e depois de guardar as sobras. O primeiro passo para evitar esse desperdício é garantir que a população consuma apenas o necessário para uma dieta saudável.
Além disso, é importante aprender formas de reutilização de alimentos, por meio de receitas que ajudam a aproveitar as sobras — além de talos, folhas e outras partes, que muitas vezes não são consumidas pela população —, e uma maior adesão aos processos de reciclagem.
Situação do Brasil na pandemia: epicentro da fome
O consumo de alimentos é um direito básico, protegido pelos termos da segurança alimentar. Mas para acabar com a fome no mundo, é preciso combater veementemente todas as formas de desigualdade e exigir políticas públicas mais eficientes. No Brasil, a situação da fome é grave e por motivos diversos.
Em nosso relatório “Dignidade, não Indigência“, mostramos que a pandemia levará mais de 500 milhões de pessoas para a pobreza no mundo se medidas sociais não forem aplicadas com urgência.
Ainda segundo o relatório, em 2014, o Brasil parecia vencer a guerra contra a fome — para integrar o Mapa da Fome, 5% da população de um país precisa viver em pobreza extrema —, mas a partir de 2018, cerca de 100 mil pessoas entraram nessa situação no país, principalmente em função de:
- aumento acentuado nas taxas de pobreza e desemprego;
- cortes radicais nos orçamentos para agricultura e proteção social;
- cortes no programa Bolsa Família;
- desmantelamento gradual de políticas públicas e instituições destinadas a combater a pobreza, como o Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional).
Com a pandemia, as medidas de distanciamento social adotadas para conter a propagação do vírus intensificaram a gravidade da situação, uma vez que muitos brasileiros viviam com empregos informais não tiveram respaldo do governo.
O auxílio emergencial, apesar de ter sido determinante para minimizar os efeitos da pandemia nas casas dos brasileiros, também teve vários aspectos limitantes para o pleno acesso aos mais necessitados, como a exigência de uso de um sistema remoto para cadastro e acompanhamento, demora nas respostas e indeferimentos sem justificativas, o que ressaltou uma grande falta de governança e um repositório de dados sobre a população totalmente desatualizado.
Ações para acabar com a fome no Brasil
Os programas de transferência de renda integram ações que poderiam acabar com a fome no Brasil. A ideia da renda básica universal é antiga, mas é bem-sucedida em vários países, inclusive os Estados Unidos e recomendada pela ONU.
O projeto, pautado inicialmente no Brasil por Eduardo Suplicy, voltou a ser discutido com a distribuição do auxílio emergencial e a necessidade de manutenção de programas como o Bolsa Família.
O projeto seria custeado por meio do Imposto Sobre Grandes Fortunas, uma forma de recolhimento prevista na Constituição Federal que nunca foi implementada e poderia arrecadar até R$ 80 bilhões por ano.
A taxação de heranças e grandes fortunas também seria uma opção para minimizar a desigualdade econômica e a má distribuição de renda do país. O Projeto de Lei Complementar nº 183 que prevê a taxação de 0,5% nos patrimônios líquidos acima de R$ 22,8 milhões atingiria ínfimos 0,1% da população, que ganha acima de 80 salários-mínimos mensais.
O sistema tributário brasileiro tem foco no consumo (chamada de tributação indireta) e isso também onera os mais pobres. Outra forma de reduzir as desigualdades e, consequentemente, a fome no Brasil, seria uma reforma tributária que adequasse de forma proporcional a taxação das atividades realizadas no país.
O maior problema disso é que, como os maiores patrocinadores das campanhas políticas e influenciadores das ações dos políticos no Brasil, os empresários são os primeiros desinteressados nessa pauta. Logo, falta atitude e interesse governamental para que a sociedade pare de pagar pela qualidade de vida de uma mínima parcela da população.
A Oxfam Brasil já listou as cinco propostas tributárias para reduzir as desigualdades:
- Simplificação e redução da tributação sobre o consumo;
- Equidade no imposto de renda pessoa física com o fim da isenção de lucros e dividendos, e maior distribuição das faixas de renda e alíquotas para tributação;
- Equidade no imposto de renda pessoa jurídica para evitar que grandes empresas paguem menos impostos que as pequenas e médias em razão do uso de diferentes regimes fiscais;
- Aplicação do ITR — o “IPTU rural” — nas suas funções social e de preservação ambiental, além da sua capacidade arrecadatória de grandes propriedades;
- Adoção do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF) sobre o 0.1% de pessoas com maior riqueza acumulada no país;
Outra forma de combater as desigualdades e melhorar a situação da fome no país seria por meio de uma maior rigidez no combate à sonegação fiscal. Muitas empresas transferem suas riquezas para paraísos fiscais a fim de pagarem menos impostos, mas isso interfere significativamente na arrecadação e no oferecimento de serviços públicos à população.
O cidadão mais pobre então, a parcela mais vulnerável de todo esse contexto, precisa pagar impostos mais altos para compensar a sonegação da parcela mais rica da população.
Além das ações de efeito em curto prazo, seria imprescindível fomentar a educação, aumentar a inclusão nas escolas e universidades, criar mecanismos para incentivar a representatividade de grupos minoritários em processos políticos e outras formas eficientes de combater a desigualdade social e econômica por meio do aumento de oportunidades para os menos favorecidos.
Ainda que a situação de insegurança alimentar e fome no mundo foram potencializadas a partir de todas as consequências econômicas causadas pela pandemia de Covid-19, existem outros fatores determinantes para essa situação desumana e tão cruel: as guerras e conflitos armados, as mudanças climáticas e, conforme ressaltamos, a desigualdade.
A fome no mundo deve ser um dos principais focos da política mundial, especialmente a do Brasil, pois muitas famílias precisarão contar com a solidariedade da população para ter o que comer nos próximos meses.
A ajuda financeira fornecida pelo governo federal com o retorno do auxílio emergencial é ínfima e não supre a necessidade das famílias brasileiras. As ações de contenção do vírus são insuficientes para minimizar as próximas ondas de contágio e, consequentemente, fechamento do comércio, e a compra de vacinas é insignificante para garantir a normalidade da nossa situação em longo prazo.
Você quer fazer alguma coisa para ajudar a combater essa situação? Faça uma doação para a campanha Tem Gente Com Fome!
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- Se a cadeia produtiva de alimentos produz mais que o suficiente para alimentar a população mundial, por que a fome ainda é tão grave no mundo? Descubra no artigo a seguir.
- O acesso à alimentação saudável e de valor nutricional adequado é um direito básico violado diariamente no mundo. Entenda tudo sobre o assunto no artigo abaixo.
- A fome no mundo é um problema crônico, potencializado pela pandemia de Covid-19. Entenda a seguir como ele impacta na sociedade e quais medidas poderiam ser tomadas para minimizar seus efeitos.