No início de julho de 2022, o Parlamento Europeu votou uma diretiva de Devida Diligência e Sustentabilidade Corporativa, estabelecendo regras sobre a responsabilidade das empresas com os direitos humanos e com a obrigação de realizar devida diligência em sua atuação corporativa.
Esse processo começou em 2020, quando o Comissário para Justiça da União Europeia, Didier Reyners, anunciou um plano para o estabelecimento de regras que trariam grande mudança na atuação empresarial na Europa. À época, a França já havia aprovado uma legislação semelhante, e a Alemanha estava seguindo o mesmo caminho (a lei alemã entrou em vigor no dia 1º de janeiro de 2023).
A primeira versão da proposta europeia foi apresentada em fevereiro de 2022, sendo considerada ‘tímida’, devido o grande embate que houve entre os defensores de uma lei mais suave e os que a queriam mais dura e punitiva. Resultado: empresas do setor financeiro ficaram de fora da proposta final (algo ruim), mas a obrigação das empresas de adaptarem suas práticas de compras ao respeito do direito a um salário digno dos trabalhadores de suas cadeias de fornecimento passou e está na proposta final.
Há, ainda, um grande calcanhar de Aquiles na proposta aprovada: a devida diligência será reduzida a partir do primeiro elo da cadeia de fornecimento a meras provisões contratuais, evitando-se assim um processo pró-ativo de conferência. Isso enfraquece o processo como um todo, abrindo brechas para o não-cumprimento dos regramentos estabelecidos pela nova lei.
A diretriz aprovada pelo Parlamento Europeu agora entra em uma nova e última fase de negociação, entre o Conselho de Representantes da União Europeia (de 27 países), o Parlamento Europeu e a Comissão Europeia. A ideia é estabelecer um acordo para o texto final que, depois de aprovado e transformado em lei, deverá ser implementado pelos países-membros da União Europeia em suas legislações nacionais.
Algumas questões importantes
- O prazo que os países europeus têm para incluírem a lei em suas legislações nacionais. O lobby conservador quer um prazo de três a cinco anos. O risco é que isso gere o incentivo para maior exploração e violações de direitos nesse período, para aproveitar os últimos anos sem a lei, e não um esforço de implementação e adaptação prévia à lei.
- De acordo com o texto atual, as empresas que seriam cobertas pela lei seriam aquelas com faturamento anual de 40 milhões de euros e mais de 205 funcionários. Grandes empresas que não são da Europa mas têm operações no continente europeu e atendam a esses critérios também estariam sujeitas à nova lei. No entanto, há uma pressão para a reduzir o número de empresas sujeitas à lei. A proposta atual cobre apenas 2% das empresas na Europa.
- A proposta atual cobre a obrigação de devida diligência para toda a cadeia de valor das empresas, ou seja, tanto a cadeia de fornecimento quanto o pós-venda do produto. Há, no entanto, uma divergência entre as diferentes instituições europeias sobre o assunto. Para a Comissão Europeia, toda a cadeia tem que ser coberta, mas o Conselho Europeu gostaria de limitar o escopo a apenas a cadeia de fornecimento. O Parlamento Europeu, por sua vez, quer que a devida diligência tenha validade até a venda do produto, mas não após a venda. Ao limitar o escopo da lei apenas para a cadeia de fornecimento, as empresas que exportam produtos perigosos (como agrotóxicos banidos na União Europeia que são aceitos no Brasil) não seriam responsáveis pelos danos causados. Empresas europeias que causaram danos e violações no Porto de Suape e em Brumadinho no Brasil, por exemplo, também estariam fora da responsabilização.
- O setor financeiro está sendo protegido das obrigações com direitos humanos. A proposta europeia coloca menos responsabilidades para bancos, fundos de investimento e setor financeiro como um todo. Os bancos só terão que fazer a devida diligência para seus clientes diretos, e mesmo essa obrigação não se aplica a empresas de tamanho médio. Investidores e corretores também não terão a mesma obrigação de realizar a devida diligência nas empresas em que colocam seus investimentos. O Conselho Europeu deseja flexibilizar ainda mais, deixando a cargo de cada país europeu a decisão final.
- A proposta atual manteve a responsabilização dos diretores das empresas. Esse ponto estava em risco e por enquanto foi mantido.
- A proposta limita o acesso das vítimas de abusos das empresas na busca por reparação. Atualmente o texto obriga que as vítimas demonstrem a violação da lei de devida diligência por parte das empresas, e não que as empresas demonstrem que cumpriram os requisitos da lei. Dessa maneira, o acesso à justiça para as populações atingidas de outros países ficará muito limitado.
A necessária responsabilização das empresas
A Confederação Oxfam acompanha esse processo e pressiona as autoridades envolvidas para que a legislação criada de fato responsabilize as empresas e proteja as pessoas em risco de terem seus direitos violados. A Oxfam Brasil apoia buscando trazer a perspectiva de quem está junto com as populações atingidas pelas empresas europeias em outros países.
Muitas empresas brasileiras e estrangeiras que operam no Brasil serão atingidas por essa lei europeia, assim como seus respectivos fornecedores. Por um lado, essa nova legislação de devida diligência deverá estimular o setor privado brasileiro, principalmente as multinacionais e os exportadores, para que implementem mais políticas e práticas de respeito aos direitos humanos. Por outro lado, o alcance da nova lei ainda é limitado e não dá às populações atingidas (trabalhadores rurais, povos indígenas, comunidades tradicionais e camponesas) as ferramentas necessárias para agir contra as violações de direitos por parte das empresas e suas cadeias de valor.
É importante que o Brasil avance e crie os seus próprios marcos regulatórios sobre direitos humanos e empresas. O país precisa de políticas públicas e leis nacionais que lidem com as questões do país, sem depender da Europa para proteger as pessoas em situação de vulnerabilidade da violação de seus direitos.
Um dos caminhos é a aprovação do projeto de lei PL-572 de 2022, que cria um Marco Nacional sobre Direitos Humanos e Empresas, que aborda tanto a obrigação da devida diligência, como também o apoio às populações atingidas. A lei em discussão no Congresso brasileiro é muito mais avançada e apropriada ao Brasil do que a atual proposta sendo discutida na Europa.