Gustavo Ferroni (Coordenador de Setor Privado e Direitos Humanos da Oxfam Brasil) e Luiz Franco (Oficial de Projetos da Oxfam Brasil)
Quando falamos de mitigação de impactos de grandes obras e projetos, gestão de risco e proteção dos povos indígenas, povos e comunidades tradicionais e outros públicos afetados o Brasil já não está alinhado com as melhores práticas internacionais. Basta lembrarmos dos casos de Mariana e Brumadinho, da usina de Belo Monte, do porto de Suape, da mineradora Belo Sun para citar alguns dos casos mais recentes de grandes projetos que acarretaram impactos socioambientais desastrosos. Mesmo com o mundo todo, há décadas, discutindo que é possível o desenvolvimento ser justo e sustentável, parte de nossos parlamentares e do empresariado nacional parece viver com a mentalidade de outros tempos.
No Brasil, infelizmente, não se adotou o chamado Consentimento, Livre, Prévio e Informado. Um princípio presente na Convenção 169 da OIT e na Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas e que tem sido amplamente adotado como melhor prática em termos de gestão de impactos, no qual traz consigo a noção de que aqueles povos ou comunidades que serão mais afetados por um grande projeto devem ter o direito ao veto. Não se trata de uma noção radical, mas de um incentivo para que os proponentes de projetos impactantes ofereçam de fato uma grande mitigação dos impactos e, quando não for possível mitigá-los, ofereçam compensações justas adequadas. As consultas sem a possibilidade de as comunidades oferecerem ou retirarem seu consentimento são instrumentos muito limitados. E agora, mesmo estes instrumentos limitados, estão ameaçados. Sem este incentivo da possibilidade ou não do consentimento, as comunidades e os povos são vistos apenas como um estorvo aos empreendimentos, um custo, e é esta visão que parece estar por trás do PL 3729, de 2004, o PL do Licenciamento Ambiental, aprovado nesta quarta-feira (12/5) no plenário da Câmara dos Deputados, em seu texto principal. Haverá, ainda nas próximas sessões a votação dos destaques do PL.
Alteração do licenciamento ambiental e avaliação de impacto
O Projeto de Lei 3729 altera de maneira substantiva o licenciamento ambiental e a avaliação de impacto, e foi colocado em pauta para votação na Câmara dos Deputados em caráter de urgência. A versão atual do PL, um substitutivo do deputado Neri Geller, não foi submetida ao debate público e muito menos a apreciação dos povos e comunidades que serão os mais afetados pelas alterações. Alguns dos exemplos dos retrocessos apresentados pelo projeto são:
A realização de audiências públicas e consultas públicas no modo online, que em um primeiro momento pode parecer algo aceitável. Mas em um país tão desigual como o Brasil, onde o acesso a internet é restrito, como aliás a pandemia demonstrou muito bem, será que queremos que àqueles que têm suas moradias e meios de vidas colocados em risco por um empreendimento só possam colocar suas preocupações online? E se as pessoas não tiverem acesso? E se travar? E se acabar o crédito? Se não conseguimos resolver o acesso a internet para garantir a educação de nossas crianças e jovens durante a pandemia, conseguiremos fazê-lo para garantir os direitos de povos indígenas e comunidades em situação de vulnerabilidade quando estes discordarem do governo e de grandes empresas?
A alteração da definição de impacto, que apresentou mudanças muito negativas. O significado de impacto é algo elementar para o licenciamento. A proposta atual não menciona mais os efeitos sobre a saúde e o bem-estar da população ou as condições estéticas e sanitárias do meio ambiente. Será que podemos acreditar que a saúde daqueles que moram perto de uma usina termoelétrica ou de uma mineradora não será mais afetada? Será que secar uma cachoeira não é mais algo relevante e que deve ser considerado como impacto?
Outro destaque dos retrocessos está nas licenças automáticas ou auto licenças (LAU e LAC). Imagine que uma barragem como a de Brumadinho pudesse ser construída próxima a sua casa e que o órgão ambiental responsável emitisse uma licença automática para tal empreendimento, sem um parecer prévio. Você se sentiria confortável?
Nosso país se tornou uma grande potência do agronegócio sem nenhum problema como o modelo de licenciamento atual. Porém, a proposta exclui da necessidade de licenciamento os cultivos agrícolas e atividades agropecuárias. E isto que nos últimos anos o desmatamento na Amazônia tem batido recordes. Será que em nosso país, que já é o maior de soja e de carne bovina do mundo, precisamos flexibilizar o licenciamento de tais atividades?
Estes são apenas alguns exemplos entre os muitos retrocessos que o PL 3729 do Licenciamento Ambiental traz. O discurso daqueles que o defendem está amarrado na necessidade de atrair investimentos. Mas ignora que este projeto vai na contramão do que dizem instituições multilaterais financeiras como o Banco Mundial e a International Finance Corporation, o Novo Banco de Desenvolvimento (o banco dos Brics), o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB) que são os principais investidores em tais projetos. E também vai na contramão do que dizem inúmeros bancos privados que são signatários dos Princípios do Equador, incluindo os maiores bancos nacionais e mundiais.
Sociedade civil e movimentos sociais lutam contra o retrocesso
Em 2019, nós já havíamos alertado para a possibilidade de uma tríade da devastação ocorrer, com alterações administrativas em políticas públicas e órgãos ambientais, algo que já se consolidou com o esvaziamento do Ibama e do combate ao desmatamento, alterações legislativas como a mudança do licenciamento e, por fim, a tentativa de alterações constitucionais para retroceder em termos de direitos indígenas e no direito à terra.
Felizmente, a sociedade civil organizada e os movimentos sociais lutam a cada tentativa de retrocesso. Juntos, com o apoio de todas as pessoas que defendem o desenvolvimento sustentável com respeito aos direitos humanos, vamos construir um país melhor.
Ao longo dos últimos anos, aumentaram-se os níveis de riscos socioambientais e, ao mesmo tempo, diminuiu-se o direito de escuta e consulta daqueles que sofrem impactos e danos derivados de empreendimentos. Nesse momento tão crucial para o meio ambiental brasileiro, é necessário que a proteção e preservação da garantia de direitos dos povos e comunidades tradicionais sejam respeitados e preservados, assim como os direitos socioambientais.