Este glossário foi desenvolvido pela equipe da Oxfam Brasil com base em sua experiência de trabalho e na consulta de fontes internas e externas. Nosso objetivo com este glossário é ajudar as pessoas interessadas no tema a se apropriarem de conceitos e referências importantes. As definições apresentadas aqui não encerram o assunto e recomendamos às pessoas interessadas que pesquisem mais.
A Oxfam Brasil trabalha com o tema de direitos humanos e empresas de diversas maneiras. Nosso foco principal é buscar uma atuação em conjunto com pessoas, grupos e comunidades atingidas por atividades empresariais, e que tiveram seus direitos violados, na busca por soluções e respostas às suas demandas. Também atuamos para influenciar no estabelecimento de regras, voluntárias ou obrigatórias, para uma atuação empresarial que priorize os direitos humanos na prevenção, mitigação e reparação de violações, dando às populações em situação de vulnerabilidade maior centralidade nas decisões.
Nossa estratégia foca principalmente na situação do Brasil rural e nas cadeias produtivas globais que levam nossas commodities primárias para o resto do mundo. Em nossa atuação, dedicamos um olhar específico aos trabalhadores e trabalhadoras assalariados rurais e às comunidades e povos que são afetados por conflitos relacionados aos recursos naturais.
Todo trabalho da Oxfam Brasil tem uma abordagem
antirracista e de justiça de gênero – o que recomendamos a todas as
organizações interessadas em direitos humanos no geral ou no contexto das
empresas.
1 Princípios Orientadores da ONU sobre empresas e direitos humanos
Os Princípios Orientadores da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre Empresas e Direitos Humanos (em inglês são chamados de United Nations Guiding Principles on Business and Human Rights ou pela sigla UNGP) são um documento de diretrizes aprovado em 2011 pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU. Os Princípios estabelecem uma série de diretrizes para os Estados e as empresas sobre como prevenir e lidar com as violações de direitos humanos que ocorrem devido a atividades empresariais. Na mesma resolução foi criado o Grupo de Trabalho da ONU sobre empresas e direitos humanos para promover e disseminar os Princípios.
Em 2005 o professor de Harvard John Ruggie foi nomeado pelo então secretário geral da ONU, Koffi Annan, como Representante Especial do Secretário geral para a Questão de Direitos Humanos e Empresas Transnacionais e outras Empresas. Em 2008, ele apresentou a proposta de um marco no tema baseado no tripé: “Proteger, Respeitar e Remediar”. Alguns relatórios foram produzidos e consultas públicas foram realizadas com a participação da sociedade civil, governos e o setor empresarial. Este processo culminou na criação dos Princípios da ONU como uma referência voluntária de diretrizes que reafirma a obrigação do Estado em proteger os direitos humanos nas atividades empresariais, e estabelecendo a responsabilidade das empresas em respeitá-los independente do local, do tamanho da empresa, controle acionário, propriedade ou da natureza de suas atividades. Além disso, estabelece o acesso à remediação como algo central tanto para o dever do Estado em proteger quanto para a responsabilidade das empresas em respeitar os direitos humanos.
2 Diretrizes da OCDE sobre empresas multinacionais
A OCDE é a Organização pela Cooperação e Desenvolvimento Econômico, originalmente criada para ajudar na recuperação da Europa após a Segunda Guerra Mundial. Com o passar dos anos, transformou-se em um bloco de cooperação política e econômica pautado pelas práticas e visões da Europa e dos Estados Unidos. Outros países, mesmo fora da Europa, aderiram ao bloco após cumprirem requisitos estabelecidos. O Brasil é um aliado estratégico da OCDE e o país não-membro com maior participação e assinatura de convenções no bloco.
As diretrizes da OCDE para empresas multinacionais são orientações voluntárias criadas pela OCDE com relação a uma conduta empresarial responsável. O Brasil é signatário das diretrizes e isso significa que o país deve promovê-las e também criar uma estrutura para monitorar seu cumprimento e mediar conflitos entre as empresas multinacionais e partes interessadas que aleguem que as empresas não estão cumprindo as diretrizes. Os países signatários das Diretrizes criaram um órgão chamado Ponto de Contato Nacional (PCN) que recebe denúncias sobre empresas que não estão em conformidade com as diretrizes. Desde a publicação dos Princípios da ONU, as Diretrizes foram revistas e buscaram se alinhar aos Princípios.
3 Tratado Vinculante para regular empresas transnacionais com relação aos direitos humanos
Em 2014, o Conselho de Direitos Humanos da ONU aprovou uma resolução para estabelecer um grupo intergovernamental de trabalho com mandato para elaborar um instrumento internacional vinculante que regule, no direito internacional dos direitos humanos, as atividades de empresas transnacionais e outras corporações empresariais. O Conselho reconheceu a responsabilidade das empresas transnacionais em respeitar os direitos humanos, conforme colocada nos Princípios Orientadores, e também a capacidade das empresas em causar impactos adversos aos direitos humanos. O grupo de trabalho foi criado sob a liderança do Equador e da África do Sul e, em 2022, já estava em sua oitava sessão de negociação com diversas propostas e versões de um tratado já construídas.
A ideia de um tratado vinculante era antiga. Boa parte da sociedade enxergava a abordagem de práticas voluntárias e autorregulação das empresas como algo limitado. Essa abordagem é parte do movimento de responsabilidade social corporativa, uma lógica reproduzida pelos Princípios Orientadores da ONU. Um instrumento vinculante seria um tratado que coloca obrigações aos países participantes de absorver essas obrigações em sua legislação e regulações nacionais.
4 Devida diligência em direitos humanos
O conceito de devida diligência em direitos humanos foi consolidado pelos Princípios da ONU (Princípios 17 e 18) e refere-se à noção de que as empresas têm a obrigação de “saber” e “demonstrar” se suas operações diretas e indiretas estão associadas a violação de direitos humanos. Pelos Princípios da ONU, uma empresa pode alegar ignorância sobre certa situação para se defender de que está ligada à violações. A devida diligência estabelece um processo proativo e sistemático de identificar potenciais e atuais violações decorrentes das operações diretas ou das relações comerciais (cadeia de valor).
Os Princípios indicam que a devida diligência serve para identificar, prevenir, mitigar e prestar contas sobre os impactos adversos em direitos humanos. Esse processo deve ir além da identificação, incluindo a ação sobre o que for encontrado, a rastreabilidade das respostas e a comunicação de como a empresa lidou com esses impactos. Ao realizar a devida diligência, os Princípios indicam que as empresas têm que ter especialistas internos e/ou externos em direitos humanos, e têm que realizar consultas significativas com grupos potencialmente afetados e outras partes interessadas relevantes.
5 Risco
É farta a literatura sobre o que é risco – desde o campo financeiro e jurídico, à questão ambiental. Aqui estamos falando sobre risco no contexto das atividades emrpesariais e o respeito aos direitos humanos. E não se trata do risco reputacional ou legal que a empresa pode correr caso alguma violação de direitos humanos seja associada a ela. Estamos falando do risco para pessoas e grupos, sujeitos de direitos, que podem ter seus direitos humanos violados. As empresas devem olhar o risco pela ótica das pessoas e não pelo risco ao seu negócio.
Essa proposição de risco faz parte, por exemplo, do guia para a implementação dos Princípios da ONU publicado pelo Grupo de Trabalho da ONU sobre empresas e direitos humanos. Os riscos identificados demandam uma ação que dever ser primeiro a prevenção e depois a mitigação. As diretrizes da OCDE por exemplo dizem: “No contexto de sua cadeia de fornecedores, se as empresas identificarem um risco de impacto adverso, devem então tomar as medidas necessárias para cessar ou impedir o impacto.”
6 Cumplicidade
A ideia de cumplicidade já é presente em nossa sociedade e, inclusive, no sistema legal. No contexto de direitos humanos e empresas, ela se refere às relações comerciais, às cadeias de valor e aos tipos de controle de uma empresa sobre outra. Isso quer dizer que uma empresa tem responsabilidade com relação aos riscos aos direitos humanos nos seus negócios com outros – seja um fornecedor, por meio de um consórcio com outras empresas, uma joint-venture ou até um investimento financeiro em outras empresas ou projetos.
A norma ISO 26000 de responsabilidade social define a cumplicidade com três eixos: a cumplicidade direta que ocorreria quando uma empresa sabidamente e diretamente contribui para uma violação de diretos; a cumplicidade beneficial, que seria quando a empresa se beneficia diretamente das violações de direitos por terceiros; e a cumplicidade silenciosa, quando a empresa não se posiciona sobre questões sistêmicas e contínuas de violações de direitos humanos.
7 Engajamento com partes interessadas (stakeholders)
O processo de engajamento com partes interessadas é definido pela norma AA1000 como o processo utilizado pelas empresas para se engajar com as partes interessadas relevantes, visando alcançar resultados em comum acordo. Segundo essa norma, o processo obrigaria as empresas a envolver as partes interessadas na identificação, compreensão e na resposta às questões e preocupações com relação à sustentabilidade (incluindo diretos humanos), e a reportar, explicar e responder para as partes interessadas sobre suas decisões, ações e desempenho. Segundo a norma ISO 26000, o engajamento com partes interessadas deveria ser “interativo e com a intenção de prover uma oportunidade para que as visões das partes interessadas sejam ouvidas”.
O diálogo social é uma das formas mais importantes de engajamento com partes interessadas. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) define o diálogo social como sendo todas as formas de negociação, consulta e troca de informações entre empregadores, sindicatos e governos. É importante ressaltar que os direitos fundamentais do trabalho são direitos humanos e fazem parte da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Além disso, criar sindicatos e defender seus interesses por meio deles é reconhecido como um direito humano na Declaração. Por isso, o engajamento com sindicatos merece especial atenção.
8 Materialidade
O conceito de materialidade refere-se a prática das empresas de definir quais são as questões mais significantes e relevantes em termos de seus impactos na sustentabilidade e o contexto no qual operam. A Global Reporting Initiative (GRI) diz que os tópicos materiais são aqueles impactos mais significantes na economia, no meio ambiente e nas pessoas, incluindo os impactos nos direitos humanos. Quando as empresas buscam estabelecer a materialidade, ou seja, priorizar aquilo que deveriam focar, no geral se estabelece o que é mais relevante para a operação (os negócios) e o que é mais premente em termos de impacton – prioridades ficam justamente nessa intersecção.
Porém, essa pode ser uma abordagem muito problemática em termos de direitos humanos. Devemos lembrar que, de acordo com o direito internacional, os direitos humanos são universais, indivisíveis e interdependentes; ou seja, não é possível separar o cumprimento de certos direitos de outros, e não há uma graduação entre os direitos – seu cumprimento não pode ser parcial. Esses princípios colocam um problema para a abordagem de materialidade. Uma empresa não pode deixar de considerar o risco para direitos humanos caso esse risco se refira a uma parte pequena da sua operação – esse é um cenário que comumente resulta de exercícios de materialidade. Os direitos humanos devem ter primazia sobre outras questões, e são sempre materiais para todas as organizações.
9 Salário digno
A Organização Internacional do Trabalho (OIT) menciona no preâmbulo de sua Constituição a necessidade de se garantir um salário digno (“living wage”) – um salário que garanta condições dignas de vida como um pré-requisito para garantir a paz e harmonia no mundo. No contexto da responsabilidade das empresas com suas cadeias de fornecimento e o respeito dos direitos humanos, esse debate ganhou força. Em paralelo, na Europa e nos Estados Unidos, esse debate ganhou corpo conforme as consequências da precarização do trabalho avançaram e as pessoas nesses países considerados desenvolvidos passaram a ter que acumular vários empregos para garantir uma renda que assegurasse as necessidades básicas.
Ao se envolver no debate sobre de salário digno e buscar estabelecer compromissos e práticas no tema, é importante que as empresas situem esses esforços no contexto dos direitos humanos. É importante que a abordagem não seja legalista, devendo reconhecer que a responsabilidade vai além da lei, ou seja, o salário mínimo não deve ser automaticamente interpretado como um salário digno. Além disso, é essencial que a definição do salário digno envolva a participação dos sindicatos.
10 Consentimento livre, prévio e informado (CLPI)
O Consentimento Livre, Prévio e Informado (CLPI) é entendido como um princípio em que os povos indígenas devem ser adequadamente informados sobre projetos que afetem suas terras, em tempo hábil, de uma maneira livre de coerção e manipulação, garantindo assim a oportunidade de consentir com tal projeto ou negar o consentimento. O CLPI deve ser contínuo e não pontual, e a possibilidade de dizer não é parte essencial e indivisível do CLPI.
O CLPI, em geral, é interpretado como sendo aplicado aos povos indígenas, porém a Oxfam Brasil defende sua aplicação a todos os povos e comunidades afetados por projetos e empreendimentos empresariais. O CLPI deriva do direito internacional que prevê que “todos os povos têm o direito a autodeterminação” e que todos os “povos têm o direito a livremente buscar seu desenvolvimento econômico, social e cultural”.
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