A ideia de ativismo, engajamento por direitos e mudanças na sociedade sempre esteve associada à militância e à formação política. Era comum ver as lideranças dedicando suas vidas às causas, deixando à parte suas subjetividades pessoais. Hoje, há uma ampliação dessa perspectiva, com a inclusão do afeto e a compressão de que a militância é, ao mesmo tempo, individual e coletiva.
Muitos desses debates estão surgindo pelas iniciativas de mulheres negras. O atual contexto político no País tem evidenciado cada vez mais a necessidade de reconhecer o protagonismo dessas brasileiras nas lutas sociais. Além disso, as mulheres negras orientam renovações simbólicas que dialogam com a realidade da população. Em termos teóricos, práticos e utópicos, faz-se necessário ouvi-las para qualquer construção social em curso no país.
Esta questão carece de visibilidade, sobretudo no dia 25 de julho, Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. Ao mesmo tempo em que fazem reivindicações a partir de um conjunto de direitos, as mulheres negras afirmam que justiça, equidade, solidariedade e bem-estar são valores inegociáveis, diante da pluralidade de vozes que coabitam o planeta e reivindicam o bem viver.
O conceito de autocuidado surge, portanto, como fundamental dentro da ação política. Muitas referências podem ser associadas a esse conceito, como saúde mental, bem-estar físico e psicológico, segurança, entre outras. Porém, a perspectiva do autocuidado agrega à ação política uma compreensão de que não basta se dedicar para uma causa se isso significar adoecimento, isolamento, risco de vida ou mesmo o convívio com um completo mal-estar.
As relações – pessoais e também políticas – enfrentam códigos como humores, crenças, valores, religiões e hábitos distintos, e as diversas manifestações de intolerância percebidas atualmente indicam como pode ser desafiador entender o outro como diferente e ao mesmo tempo, semelhante.
Essa falta de cuidado e, por consequência, de empatia implica no enfraquecimento dos laços humanos e num reforço de distanciamentos, não apenas físicos, mas sobretudo afetivos.
O autocuidado e o bem viver têm profunda ligação no debate que se faz sobre a construção de uma nova sociedade. Estamos num momento de extremo desequilíbrio no planeta, que potencializa as desigualdades, especialmente a existente entre grupos raciais – com peso ainda maior para mulheres negras. A elas são atribuídos, além dos piores índices sociais, as consequências mais duras do racismo institucionalizado.
Um olhar mais atento para a luta contra a escravidão e a história das comunidades quilombolas consegue indicar que esse movimento de resistir para existir é bastante antigo. Nos tempos atuais, são essas mulheres que fazem a micro e macro política nas ruas e arenas públicas.
O autocuidado requer reconhecer as histórias individuais que cada uma dessas mulheres carrega – em suas dores, trajetórias e realizações – para daí conceber a ação coletiva. A mulher negra em sua plenitude, seu protagonismo, com suas vivências, seus anseios e, principalmente, suas utopias quer construir um fazer político que integra o físico e o emocional.
Ninguém está imune ao racismo, e nem o vence sozinho. O autocuidado, portanto, não tem a ver com autoajuda. Autocuidado é também política e se renova enquanto conceito para estabelecermos outras estratégias de luta e formas de mobilização para incidência política.
Tauá Pires é historiadora, especialista em Gestão de Políticas Públicas de Gênero e Raça e coordenadora de programas na Oxfam Brasil. Ananda King é comunicóloga social, mestra em Antropologia Cultural e doutoranda em Saúde Global. Especialista em desenvolvimento comunitário na área de cooperação humanitária.
(artigo originalmente publicado no Le Monde Diplomatique Brasil, dia 24 de julho de 2019)