O modelo de desenvolvimento regional latino-americano está sofrendo uma mudança estrutural profunda com a crise econômica pela qual passa o Brasil, pela diminuição e modificação do papel do BNDES e pela presença cada vez maior do capital chinês. Esta foi uma das conclusões da sessão sobre “Tendências dos investimentos brasileiros no exterior nos próximos anos. BNDES, China e outras fontes de investimento”, a primeira do Seminário Empresas e Investimentos Brasileiros no Exterior, organizado pela Oxfam Brasil em parceria com a FASE (Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional), na manhã de quinta-feira, 22 de junho.
“No modelo anterior eram empresas nacionais abocanhando grandes obras com financiamento nacional. Mas hoje vemos a transição para um modelo em que a maior parte das obras vai ser assumida por empresas chinesas com fundos de investimento chineses”, afirmou Diana Aguiar, Assessora nacional da FASE.
Maria Elena Rodriguez, socióloga que atua no BPC (BRICS Policy Center), da PUC Rio, chamou a atenção para o fato de que a redução da participação do BNDES no financiamento da infraestrutura nacional, que já chegou a 90% e caiu por conta de uma combinação entre redução da atividade econômica e revelação de escândalos de corrupção pela Operação Lava-Jato, abriu esse vazio para empréstimos internos e externos, inclusive para obras já prospectadas e planejadas.
“Em 2016 voltamos a ter os desembolsos que tínhamos em 2004. O crescimento foi perdido. Primeiro houve uma discussão sobre qual deveria ser o papel de um banco público. Muitas ações foram feitas para dar sentido a uma atuação como estruturador dos projetos de desestatização e das parcerias público-privadas. O segundo momento é uma tentativa de desacreditar publicamente o banco. Contratos foram revistos e suspensos em uma grande mudança institucional em meio à crise e escândalos de corrupção. O BNDES está mudando seu papel de grande financiador para parceiro de outros bancos em outras formas de parceria. Não é mais um grande banco público. Quando o BNDES firmou um acordo sobre energias eólica e solar com a China, criou um fundo para incentivo de desenvolvimento dessas energias. Só 85% do dinheiro está destinado a empresas chinesas”.
Chineses e violação de direitos na América Latina
Em outros países da América Latina essa mudança no modelo de financiamento já está mais consolidada. O peruano Cesar Gamboa, advogado, professor da Universidade Nacional Maior de São Marcos, em Lima, lembra que em seu país 33% da carteira de investimento em mineração já pertence ao gigante asiático. Ele faz parte da ONG DAR (Derecho Ambiente y Recursos Naturales), que trabalha pelo desenvolvimento sustentável e direitos indígenas das comunidades da Amazônia.
Para piorar, este é um momento de especial fragilidade das entidades de proteção dos direitos das comunidades locais e também das regulações estatais. “Existe uma luta para desmantelar as legislações de proteção nacionais, o que enfraquece a exigência de estudos prévios de impacto ambiental e social para essas obras porque são inconvenientes para as empresas. O movimento social está fragmentado e o capital trabalha de maneira muito mais estruturada. Estamos sempre um passo atrás porque não temos informação ou pensamos em curto prazo”, afirma ele.
Gamboa lembrou de um caso emblemático: “Os chineses queriam construir uma linha de trem entre o porto de Santos e o porto de Bayovar, no Peru. A obra sofreu muita resistência dos peruanos porque cruzava muitas áreas protegidas. A China queria pagar por tudo, mas iria administrar o trem por 100 anos com isenção fiscal por todo esse tempo. Essa não é uma lógica de cooperação, de interação. É quase como entregar o território com todos os custos ambientais e sociais com transferência de tecnologia 0. Os chineses estão comprando na região e penetrando instituições públicas e privadas. Mas há pontos fracos porque eles não querem ser acusados de violação de direitos humanos, então há espaço para lutar”.
A nova realidade imposta pela presença chinesa, apesar de diferente em termos de forma, não é propriamente uma novidade para quem lida com violações de direitos por conta de grandes obras. “Há alguns anos, falávamos de expansão de investimentos em diversos setores, como a Vale, o agronegócio através de grandes empresas como BRF e JBS, empreiteiras brasileiras na África, etc. Muitas vezes a gente estava enfrentado internamente violações e víamos a replicação do mesmo modelo em outros países. Sabíamos dos casos porque éramos procurados por outras entidades. Para nossos parceiros em outros países a situação era até mais grave por conta da militarização dos territórios e maior criminalização dos movimentos sociais”, conta Diana Aguiar, da FASE.
Para ela, “hoje a expansão não está no mesmo grau, mas ainda há violações de direitos em curso, como a Vale no Rio Doce e as usinas de Belo Monte e Suape. Sempre esbarramos nos argumentos de que esses empreendimentos são inexoráveis, mas não são. A gente foi cada vez mais observando a existência de regiões de sacrifício, onde as comunidades do entorno eram expulsas ou subordinadas ao empreendimento. É a ideia de interesse nacional, que equaliza os interesses das mineradoras e empreiteiras com os da população, invisibilizando quem ganha e quem perde.”
Resistência e luta
O venezuelano Iván González, coordenador político da CSA (Confederação Sindical das Américas CSA), que representa 60 milhões de trabalhadores em 23 países, é pessimista em relação ao quadro atual: “a percepção que tínhamos anos atrás era que o mundo era infinito… Essa visão acabou. Hoje compreendemos que o mundo é finito e os problemas afetam a todos. As saídas que temos para esses problemas também são finitas. E está sendo difícil de responder a partir a partir da ótica sindical. Porque quem precisa dos sindicatos está fora dele. A estrutura sindical europeia foi construída para atuar em uma sociedade que não existe mais. E esse modelo se esgotou em outros lugares do mundo também.”
“Na nossa avaliação, apesar de tudo, esse momento propiciou a renovação da importância do movimento social. Enfrentar o momento, enfrentar o inimigo, a ordem neoliberal mundial e a necessidade de reconstrução da nossa capacidade de luta”, diz ele. Maria Elena Rodriguez, do BRICS Policy Center, concorda: “o que aprendemos é que sozinhos não conseguimos nada. As articulações com outros países e territórios é fundamental. E não perder de vista a discussão estrutural do modelo de desenvolvimento que queremos. E isso às vezes esquecemos, essa discussão mais estrutural. O alerta vem de Cesar Gamboa, da DAR: “o capital não respeita fronteira. Quando encontra resistência migra para outro país. É importante combater a corrupção estatal, mas até então tínhamos falado pouco da iniciativa privada. Nossas armas não estão voltadas a eles, mas com a chegada da China mais do que nunca precisamos estar atentos a isso.”
*Por Roberto Saraiva para Oxfam Brasil