A ação juvenil, com uma multiplicidade de agendas e formatos organizativos, tem conseguido produzir formas interessantes de resistência, apropriação e ressignificação dos espaços urbanos, sobretudo em grandes cidades como São Paulo. No centro desse fazer político está sua estreita relação com as práticas culturais dessa juventude.
O direito à cultura vem sendo uma das principais demandas de jovens paulistanos, como também uma das saídas encontradas paraa construção de suas trajetórias e identidades num contexto de enorme segregação socioespacial. Nas periferias da cidade se multiplicam, ano a ano, coletivos, grupos e iniciativas ligados a diferentes expressões culturais, nas quais o fazer artístico se conecta à luta por direitos de negros, mulheres, LGBTs e outros sujeitos. Esse protagonismo de grupos e coletivos culturais juvenis da periferia não se deu de uma hora para outra, mas já podia ser vislumbrado pelo menos desde os anos 1980, a partir do hip hop de jovens periféricos no centro da cidade, do movimento punk e de turmas de pichadores, tendo em comum a capacidade de promover práticas contestadoras, subversivas ou provocativas.
Os bairros periféricos de São Paulo e das outras cidades da região metropolitana sempre foram bolsões de pobreza, aonde poucas políticas públicas chegam, havendo poucos ou nenhum equipamento cultural. Contudo, foi nesse campo que nasceu uma das mais interessantes políticas públicas dirigidas à juventude: o Programa de Valorização das Iniciativas Culturais, conhecido como Programa VAI. Criado em 2003 graças a uma lei municipal construída por meio do diálogo com as juventudes da cidade, o VAI possibilitou que, pela primeira vez, recursos públicos fossem destinados diretamente a jovens produtores culturais, sem intermediários e com pouquíssima burocracia.
Dessa forma, inverteu um discurso de que jovens seriam perigosos ou imprudentes, apostando na autonomia desses sujeitos e na priorização da periferia, possibilitando que iniciativas coletivas de pessoas com idade entre 18 e 29 anos, em torno de diversas linguagens culturais, recebessem até R$ 20 mil – em 2013, a lei foi revista, e o valor atual é de R$ 30 mil. Com centenas de grupos apoiados tanto financeiramente como por assessoria técnica, o programa contribuiu para impulsionar a produção cultural jovem, no mesmo período em que os saraus se consolidaram nas periferias.
A difusão das ações culturais nas regiões mais afastadas do centro fez que, a partir da segunda metade dos anos 2000, a periferia vivesse uma espécie de explosão criativa, ainda que tais ações possibilitem o acesso apenas de uma parcela dos habitantes dessas áreas. Entre os efeitos que vêm sendo destacados pelos próprios grupos e coletivos, por gestores ou por pesquisadores da área, estão a criação de redes de colaboração entre produtores culturais e a formação de circuitos culturais interperiferias, fomentando novos deslocamentos entre esses espaços e bairros e também diversas articulações em torno de demandas de políticas culturais.
Em 2010, por exemplo, a Rede Livre Leste, que congrega diversos grupos e coletivos da parte leste da cidade, lançou o Manifesto Policêntrico, que, entre outras coisas, reivindica espaços físicos adequados para produzir e difundir suas artes e denuncia a dificuldade de conseguir parcerias para uso dos espaços culturais públicos disponíveis. Graças à Rede Livre Leste nasceram o fórum Cultural da Zona Leste e a Frente pelas Casas de Cultura. Posteriormente, surgiu uma articulação de produtores e produtoras culturais de todas as regiões da cidade em torno de uma lei de fomento à periferia, votada como uma das prioridades da Conferência Municipal de Cultura de 2014. Assim, a periferia paulistana conta não apenas com um contingente significativo de artistas animando uma cena cultural, mas também com uma boa capacidade de construir agendas, dialogar e pressionar o poder público.
Outro desdobramento importante diz respeito a uma mudança de olhar da juventude para a cidade e, ainda mais importante, para sua própria identidade, ao deslocar o sentido dos termos “periférico” ou “periferia”. Historicamente constituídas em torno de ideias negativas, essas palavras foram apropriadas pelos movimentos culturais e passaram a caracterizar a arte produzida nesses locais. À medida que sai da invibilidade e ganha reconhecimento interno e externo, a produção cultural da periferia se torna uma evidência de que os “periféricos” são pessoas produtivas e criativas, além de simbolizar os laços que vão sendo criados e geram frentes coletivas de lutas. Como aponta Renato de Almeida, mestre em Antropologia e liderança do Instituto Paulista de Juventude, a produção cultural presente nos bairros de periferia envolve também uma reconstrução espacial e do olhar para o espaço urbano na qual “o bairro torna-se uma mediação na relação com a cidade e com as estruturas de poder”.[1]
É acompanhando esse movimento que a Ação Educativa mantém, desde 2007, a Agenda Cultural da Periferia, como um guia mensal das atividades culturais que dá conta da lacuna deixada pelos suplementos culturais dos jornais. Também nessa direção, realizou, em parceria com diversos grupos e coletivos, cinco edições do evento Estéticas da Periferia, que discute a produção artística periférica por meio de shows, mostras, oficinas e debates. Num período em que o direito à cidade desponta como preocupação juvenil, o fazer cultural acaba sendo uma necessidade de jovens paulistanos, dando centralidade ao lazer e à cultura como direito. Mesmo em áreas mais centrais e ricas, a privatização de espaços públicos sufocou oportunidades de sociabilidade, enclausurando a população em espaços fechados, áreas acinzentadas e congestionamentos diários. Naturalmente, a demanda por reapropriação dos espaços públicos floresceu, desencadeando um sem-número de projetos e ações dirigidos aos espaços disponíveis e à produção de novas formas de convivência.
Além dos artistas periféricos, surgem movimentos de ciclistas, em favor do carnaval de rua, pela criação e requalificação de praças e parques; discussões sobre o conflito entre público e privado, sobre a militarização dos espaços e a violência policial, por acesso à moradia, entre tantas outras questões. Editais e outras políticas públicas tentam acompanhar e promover esse novo caldo cultural que busca realizar uma mudança de curso. O momento continua a ser de incertezas, mas é certo que há um conjunto de experiências culturais juvenis fervilhando, muito diferentes entre si, mas que fazem um importante contraponto ao modelo dominante e à crise de representatividade contemporânea.
*Gabriel di Pierro é assessor da área de juventude da Ação Educativa e Maria Virginia de Freitas é coordenadora da área de juventude da Ação Educativa.
[1] Renato S. Almeida, “Juventude, direito à cidade e cidadania cultural na periferia de São Paulo”, Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n.56, p.151-172, jun. 2013. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i56p151-172>.
*Artigo publicado em novembro de 2015 por Le Monde Diplomatique Brasil no encarte especial Juventudes e a Desigualdade no Urbano.