As vacinas contra a covid-19 estão chegando, e com isso esperança e euforia tomou conta das pessoas. Mas nem todo mundo será beneficiado. Isso porque a maior parte das doses produzidas foram compradas pelos países mais ricos, deixando boa parte da população global no final da fila.
Enquanto os países mais ricos, que representam 14% da população global, já garantiram 53% de todas as vacinas mais promissoras até agora (suficiente para vacinar até três vezes suas populações!), 67 países em desenvolvimento – alguns dos quais estão entre os mais pobres do mundo – só terão vacinas suficientes para imunizar uma em cada dez pessoas em 2021.
Esse é o cenário atual, segundo análise feita pela Oxfam, juntamente com outras organizações, como Anistia Internacional e Justiça Global, dos acordos entre os países e oito fabricantes de vacinas (ver tabela ao final).
Países mais pobres estão ficando no final da fila da vacinação
“Ninguém deveria ficar de fora da vacinação urgente e necessária contra a covid-19”, afirma Maitê Gauto, gerente de programas e incidência da Oxfam Brasil. “Não bastasse a compra da maior parte das vacinas pelos países mais ricos, no Brasil ainda enfrentaremos a falta de planejamento do governo federal e disputas políticas que podem afetar diretamente a proteção da população.”
O governo brasileiro anunciou esta semana que está negociando com a Pfizer/BioNTech para a compra de 70 milhões de doses da vacina da empresa americana contra a covid-19, mas não apresentou até agora um plano nacional de vacinação. Também esta semana o governo de São Paulo anunciou que dará início à vacinação no estado a partir de 25 de janeiro. O Instituto Butantan tem parceria com a empresa chinesa Sinovac para a produção da vacina CoronaVac.
A vacina da Pfizer/BioNTech já recebeu aprovação na Grã-Bretanha e a vacinação já foi iniciada. Outras duas vacinas, da Moderna e Oxford/AstraZeneca, aguardam aprovação. A vacina russa Sputnik apresentou resultados positivos nas últimas testagens e outras quatro vacinas estão na fase clínica 3.
Até o momento, todas as doses da vacina da empresa Moderna e 96% do produto da Pfizer/BioNTech foram adquiridas pelos países mais ricos. Por outro lado, 64% das doses da vacina Oxford/AstraZeneca estará disponível para populações de países em desenvolvimento. No entanto, isso só garantirá a vacinação de cerca de 18% da população global em 2021.
Os acordos com a Oxford/AstraZeneca foram feitos em sua maioria com países como China e Índia, o que significa que a maioria dos países mais pobres não fizeram ainda acordos para obter a vacina.
Farmacêuticas têm que compartilhar tecnologia e propriedade intelectual
Para ampliar a vacinação em todo o mundo, garantindo a segurança da população global, as empresas farmacêuticas que estão produzindo a vacina contra a covid-19 têm que compartilhar suas tecnologias e abrir mão da propriedade intelectual em favor do consórcio Covax da Organização Mundial de Saúde (OMS), criado para produzir doses suficientes para todos. O consórcio já conta com adesões de peso, como a China, mas ainda não tem capacidade suficiente para atender a demanda da maioria dos países.
Também é preciso que as vacinas contra a covid-19 sejam consideradas bens públicos globais, sendo assim gratuitas à população, distribuídas de maneira justa, com base na necessidade das pessoas e priorizando aquelas que estão em situação de maior vulnerabilidade.
Um primeiro passo para que a vacina contra a covid-19 esteja disponível a um maior número de pessoas possível seria apoiar a proposta feita pela África do Sul e Índia na Organização Mundial de Comércio (OMC) para que os direitos de propriedade intelectual para vacinas, testes e tratamentos sejam suspensos até que todos e todas estejam protegidos.
Além disso, é importante frisar que há imenso financiamento público no desenvolvimento dessas vacinas. Os produtos da AstraZeneca/Oxford, Moderna e Pfizer/BioNTech receberam mais de US$ 5 bilhões em financiamento público e por isso essas empresas devem agir no interesse público global. Veja tabela abaixo.
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NOTAS PARA O EDITOR:
Todos os dados do quadro abaixo são baseados no fato de que são necessárias duas doses para a vacinação, exceto a vacina da Johnson & Johnson, que requer apenas uma dose.
Os cálculos foram feitos com base nos dados da Airfinity, em novembro de 2020. A estatística “9 em 10 pessoas não terão vacinas em 67 países” tem como base o fato de que 30 países de baixa renda e 37 países com média renda só terão acesso a vacinas pelo consórcio mundial Covax, da OMS.
Nesses 67 países não estão incluídos Brasil, Indonésia e Vietnã, que fecharam acordos bilaterais com fabricantes de vacinas. Até o momento, o consórcio Covax assegurou 700 milhões de doses das principais vacinas em desenvolvimento, a serem distribuídas entre 92 países que participam do consórcio.
Dividimos as 700 milhões de doses pelas populações dos 92 países integrantes do consórcio (3,6 bilhões de pessoas) e então dividimos por dois, já que serão necessárias duas doses da vacina para cada indivíduo.
Os 67 países são: Afeganistão, Angola, Argélia, Benin, Butão, Burundi, Burquina Faso, Cabo Verde, Cambodia, Camarões, República Centro Africana, Chade, Comores, Congo, Costa do Marfim, República Democrática do Congo, Djibuti, Eritrea, Etiópia, Eswatini, Gâmbia, Gana, Guiné, Guiné-Bissau, Haiti, Quênia, Kiribati, Coreia do Norte, Laos, Lesoto, Libéria, Madagascar, Malauí, Mali, Mauritânia, Micronésia, Ruanda, São Tomé e Príncipe, Senegal, Serra Leoa, Ilhas Salomão, Somália, Sudão do Sul, Sri Lanka, Sudão, Síria, Tajiquistão, Tanzânia, Timor Leste, Togo, Tunísia, Uganda, Ucrânia, Vanuatu, Gaza, Iêmen, Zâmbia e Zimbábue.
AS OITO PRINCIPAIS VACINAS EM DESENVOLVIMENTO
Vacina | Distribuição de doses entre países ricos e pobres (até o fim de 2021) | Preço aproximado[1] | Recursos públicos recebidos[2] | Compromisso em compartilhar patentes[3] |
Pfizer/ BioNTech | Total sob contrato: 1,128 bilhão de doses. Países ricos: 1,082 bilhão de doses (96%). Países mais pobres: 54 milhões (4%) | US$ 19,50 por dose nos EUA, duas doses por pessoa. Margem de lucro de até 80%. | Sim – US$ 546 milhões para a BioNTech dos governos americano e alemão. Tem contrato de US$ 2 bilhões com o governo americano. | BioNTech detém os direitos de propriedade intelectual. Nem ela nem a Pfizer se comprometeram em compartilhar os direitos ou participar do consórcio da OMS.[4] |
Moderna | Total sob contrato: 777 milhões de doses. Países ricos: 100%. Países mais pobres: 0%. | De US$ 12 a US$ 32 por dose, duas doses por pessoa. Preço único durante a pandemia. | Sim – US$ 2,48 bilhões do governo americano. | Sim, mas limitada. Não aplicará patentes durante a pandemia e quer licenciar a propriedade intelectual depois da pandemia. Não se comprometeu com o consórcio da OMS. |
Astra Zeneca/ Oxford | Total sob contrato: 2,731 bilhões de doses. Países ricos: 983 milhões (36%). Países mais pobres: 1,747 bilhão (64%). | De US$ 3 a US$ 5 por dose do Instituto Indiano Serum, licenciado. Duas doses por pessoa. Lucro zero durante a pandemia. Lucro zero em países mais pobres. | Sim – Mais de US$ 1,9 bilhão dos governos americano e britânico. | A propriedade intelectual é da Universidade de Oxford. A AstraZeneca tem uma licença exclusiva para desenvolver e fabricar a vacina globalmente, podendo transferir tecnologia e sublicenciar. O CEO da AstraZeneca se opõe ao compartilhamento público da tecnologia e propriedade intelectual[5]. Não se comprometeu em participar do consórcio da OMS. |
Novavax | Total sob contrato: 1,376 bilhão. Países ricos: 376 milhões (27%). Países mais pobres: 1 bilhão (73%). | US$ 16 por dose. [6] | US$ 1,6 bilhão de financiamento do governo americano. [7] | Possível transferência de tecnologia entre Novavax e a empresa Indiana Serum, mas sem transparente. Nenhum compromisso em compartilhar a tecnologia ou propriedade intelectual com o consórcio da OMS. |
Johnson and Johnson | Total sob contrato: 1,268 bilhão. Países ricos: 768 milhões (61%). Países mais pobres: 500 milhões (39%). | US$ 10 por dose, sem lucro. Uma dose por pessoa. | Sim – US$ 1,5 bilhão do governo americano. | Nenhum compromisso em compartilhar a tecnologia ou propriedade intelectual com o consórcio da OMS. |
Sanofi/ GSK | Total sob contrato: 1,232 bilhões. Países ricos: 1,032 bilhão de doses (84%). Países mais pobres: 200 milhões de doses (16%). | US$ 10,5 por dose[8]. Sem lucro durante a pandemia. | Sim – US$ 2,1 bilhões do governo americano.[9] | Compromisso frágil de compartilhar a tecnologia mas nenhuma posição firme sobre o compartilhamento da propriedade intelectual. Nenhum compromisso com consórcio da OMS. |
Sinovac | Total sob contrato: 229 milhões. Países ricos (0%). Países mais pobres: (100%)[10] | De US$ 13,5 a US$ 30 por dose[11] | 40% da Sinovac é de propriedade do governo chinês. Também se beneficiou de empréstimos do governo chinês[12]. | A Sinovac compartilhou sua tecnologia com fabricantes brasileiros e indonésios, mas não se comprometeu em compartilhar com o consórcio da OMS. O governo chinês afirmou que a sua vacina será um bem público.[13] |
Gamaleya/ Sputnik[14] | Total sob contrato: 587 milhões. Países ricos (0.3%). Países mais pobres (99.7%). | US$ 10 por dose[15] | O Instituto Gamaleya pertence ao governo russo e opera sob o Ministério da Saúde russo. | Tem algum compromisso em compartlihar a tecnologia, de acordo com alguns novos informes[16] mas nada concreto – e não se comprometeu em compartilhar com o consórcio da OMS. |
[1] https://assets.oxfamamerica.org/media/documents/A_Shot_at_Recovery.pdf
[2] https://assets.oxfamamerica.org/media/documents/A_Shot_at_Recovery.pdf
[3] https://assets.oxfamamerica.org/media/documents/A_Shot_at_Recovery.pdf
[4] O Consórcio da OMS Covax é um mecanismo criado para permitir às empresas e outros fabricantes de vacinas a compartilhar abertamente sua tecnologia para permitir todos os fabricantes de vacina a produzir uma vacina segura e eficiente. https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019/global-research-on-novel-coronavirus-2019-ncov/covid-19-technology-access-pool
[5] https://www.statnews.com/pharmalot/2020/05/28/who-voluntary-pool-patents-pfizer/
[6] https://www.business-standard.com/article/current-affairs/coronavirus-vaccine-moderna-pfizer-to-oxford-covaxin-vaccine-price-who-gets-it-first-other-faqs-on-covid-vaccine-120112000362_1.html
[7] https://ir.novavax.com/news-releases/news-release-details/novavax-announces-16-billion-funding-operation-warp-speed#:~:text=Novavax%20has%20been%20awarded%20%241.6,as%20early%20as%20late%202020.
[8] https://www.barrons.com/articles/glaxo-and-sanofi-will-sell-100-million-covid-19-vaccine-doses-to-the-u-s-51596193212
[9] https://www.fiercepharma.com/pharma/sanofi-gsk-win-hefty-2-1b-operation-warp-speed-funding-for-covid-19-vaccine
[10] Dados sobre os acordos feitos pela Sinovac não incluem as doses asseguradas para a China, apenas acordos feitos com outros países.
[11] https://www.reuters.com/article/us-health-coronavirus-china-vaccine-idUSKBN2710UQ
[12] https://www.fiercepharma.com/manufacturing/china-s-sinovac-will-tackle-covid-19-shot-new-facility-backed-by-chinese-government
[13] https://news.cgtn.com/news/2020-05-19/Chinese-vaccines-will-be-made-global-public-good-says-Xi-QCpFSGlL2g/index.html
[14] Data on supply deals for Gamaleya/ Sputnik does not include doses secured for Russia, only supply deals with other nations.
[15] https://www.theguardian.com/world/2020/nov/24/russia-says-data-on-sputnik-covid-vaccine-shows-95-efficacy
[16] https://www.theguardian.com/world/2020/nov/24/russia-says-data-on-sputnik-covid-vaccine-shows-95-efficacy