Foto: Manú Castro / Casa da Mulher Nordeste
Texto: Beatriz de Oliveira, do Nós, Mulheres da Periferia
“A gente já está cansada de Genivaldos, de George Floyds, de Chacina do Cabula, de chacinas no Rio de Janeiro, de chacina em toda parte, a gente não aguenta mais. É urgente ter mulheres negras na política para lutar pelas políticas públicas que são caras à nossa população. É por isso que estamos juntas hoje, nesse sábado, para poder nos aquilombar, trocar experiências, juntar forças para que possamos vencer essas necropolíticas. Não vamos aceitar esses espaços em que nos colocaram, nem a senzala, nem o cárcere, nem o cemitério e nem o quartinho de empregada. A gente não vai tolerar mais.”
A fala potente foi dita por Ludimilla Teixeira, de Salvador (BA), durante o terceiro encontro da Jornada das Pretas 2022, evento que reúne mulheres negras ativistas de todo o país para construir agendas, discutir estratégias e compartilhar experiências na política. Em sua segunda edição, o evento é organizado pela Oxfam Brasil em parceria com o Instituto Alziras, Mulheres Negras Decidem e o Instituto Marielle Franco. Para ler a primeira e a segunda cobertura sobre a Jornada das Pretas, clique aqui e aqui.
As palavras de Ludimilla na reunião do último dia 28 de maio refletem a revolta com acontecimentos daquela semana. Na terça-feira (24/5), 23 pessoas foram mortas em chacina na Vila Cruzeiro, favela do Rio de Janeiro. No dia seguinte, mais um homem negro foi vítima da violência policial: em Sergipe, Genivaldo de Jesus Santos foi morto por sufocamento após ser preso em uma viatura, na qual policiais jogaram gás lacrimogêneo.
Para Brisa Lima, advogada criminal e de Direitos Humanos, assessora jurídica do Instituto Marielle Franco, o caso de Genivaldo “escancara como a política de segurança pública é baseada em uma política de morte e de sofrimento”.
‘A participação política é acompanhada de violência política’
A advogada Brisa Lima, que abordou a violência política, apontou a importância do recorte de raça e gênero na discussão do tema. “A participação política é acompanhada de violência política”, resume, e cita mulheres negras vítimas de diferentes tipos de agressões nesse meio, como: Erika Hilton, Eliete Paraguassu, Benedita da Silva e Marielle Franco.
Em 2021, entrou em vigor a Lei 14.192, que estabelece normas para combater a violência política contra a mulher. Nela, é definido como crime constranger, humilhar, perseguir ou ameaçar candidatas e políticas por meio de discriminação à condição de mulher ou à sua cor. Brisa comenta que apesar da legislação ter atenção à raça, não usa a categoria gênero.
“É importante a gente reivindicar essa categoria de gênero e raça justamente porque quando a gente está falando sobre a violência política está falando sobre as pessoas que historicamente foram privadas e impedidas de estarem nesses espaços de decisão. Temos que lembrar que nas eleições de 2020 o número de candidatas mulheres trans e travestis na política aumentou bastante. Muitas delas foram eleitas, estão exercendo legitimamente seus mandatos e, contudo, a lei optou por usar o termo sexo e não gênero. Numa avaliação que busca restringir a proteção apenas para mulheres cisgêneros”, explica.
Outro recorte importante é o de território. A advogada alerta para a necessidade de regionalizar o debate sobre violência política, fenômeno que ocorre em todo o país. Mas não só: o tema também é forte na América Latina, que, segundo ela, é um espaço marcado pela tradição de tortura e lógica de extermínio.
Quando uma mulher negra sofre violência política, a democracia também está sendo abalada. Por isso, é dever do Estado lidar com esse fenômeno, estabelecendo políticas propositivas “que garantam a equidade, a segurança de acesso e a oportunidade, que garantam que essas mulheres hoje não possam ser mais interrompidas em suas trajetórias, seja com interrupção de microfones ou em casos muitos mais letais, como aconteceu com Marielle. Com violência política não há democracia”, afirma a Brisa.
Campanha política é oportunidade de transformar a realidade
Marcelle Decothé, doutoranda em sociologia e coordenadora da área de incidência do Instituto Marielle Franco, falou sobre a construção que vem antes do ingresso em um cargo político: a campanha. De modo mais específico, sobre mobilização de recursos online e voluntários.
“A gente faz campanha porque é uma oportunidade para a gente transformar a realidade. Organizar uma campanha é organizar essa teoria de que você pode mudar alguma coisa. Mulheres negras têm uma dimensão muito bem colocada sobre o quanto o nosso movimento na sociedade traz a mudança”, afirma.
Ponto crucial da elaboração de uma campanha, segundo Decothé, é pensar como transmitir a história individual de uma candidata para uma história coletiva. A partir disso, será possível mobilizar uma rede que se identifique com o que é mostrado e possa se tornar base eleitoral.
Em relação a organização de voluntários para a campanha eleitoral, Marcelle Decothé alerta que é preciso conhecer as pessoas que serão chamadas a ocupar essa função e entender de que forma podem apoiar. Para isso, ela sugere o uso do Canvas, uma ferramenta de planejamento.
Dado esse primeiro passo, é necessário pensar no engajamento desse grupo de voluntários com informações e situações concretas sobre a campanha. Um outro ponto é pensar qual será a porta de entrada dessas pessoas: comícios, eventos e site, por exemplo. Cadastrar os cidadãos dispostos a colaborar é essencial.
A representante do Instituto Marielle Franco citou ainda a importância de celebrar as pequenas conquistas que aconteceram ao longo do caminho pelo cargo político.
O maior ativo são as pessoas
Para a construção de uma campanha é necessário ter recursos financeiros. Uma das formas de consegui-lo é por meio do financiamento coletivo. Na análise de Marcelle Debothé, essa estratégia vem sendo dominada pela população negra.
A comunicação deve ser o ponto central da campanha de financiamento. É necessário explicar aos possíveis doadores qual a relevância de apoiar seu projeto político. Nesse ponto, vale apontar suas soluções para os problemas principais que irá tratar se for eleita. É preciso ainda avaliar a capacidade de valores a serem doados pela sua rede, para definir uma meta de arrecadação.
“[É necessário] trabalhar numa narrativa que direcione o que você quer almejar, de uma forma que você mobilize o imaginário social nas pessoas. É muito importante conseguir cada vez escalonar mais o seu ciclo de pessoas mobilizadas”, afirmaDobothé, acrescentando que o maior ativo de uma campanha são as pessoas envolvidas nela.
“O perigo representa a culpa da nação”
Questionadas sobre como a violência política de gênero e como a mobilização de recursos e de voluntários afetaram suas campanhas, as 40 participantes do Jornada das Pretas 2022 se reuniram em grupo para trocar suas experiências.
Ana Cleia, de Porto Nacional (TO), trouxe as reflexões: “Nem sempre é possível identificar que estamos passando por uma situação de violência” e “para uma mulher negra chegar num lugar de poder, vai ser necessário passar por muitos obstáculos”.
Sobre essa dificuldade de perceber a violência, a advogada Brisa Lima afirmou: “A gente retoma aquela questão da violência contra a mulher como um todo, não é só o olho roxo que é violência. É importante a gente mencionar todos os tipos, inclusive o não uso dos recursos dos partidos é uma violência patrimonial.”
“Um dos objetivos da violência política contra mulheres negras é restringir a participação delas na tomada de decisão dos partidos, as mulheres são preteridas nas candidaturas prioritárias. Outro objetivo é desqualificar a presença dessas mulheres, então as suas competências, saberes e habilidades são restringidas” comentou a participante Izete Nascimento, de Brasília.
As agressões sofridas por mulheres negras no ramo político foram sintetizada pela cantora e compositora Pietra Souza, do Distrito Federal, que recitou versos de sua poesia “Manifestar-se”. Em um trecho, diz:
“Nos manifestamos e sabemos dos riscos e dos ataques que estaremos sujeitas ao nos colocarmos em movimento.
Mas para nós a submissão de olhar um novo mundo se formando e continuarmos nas práticas coloniais que eles nos impuseram é o perigo.
Novos cenários estão surgindo e nossas práticas não serão subordinadas.
O perigo pra eles é que vivamos novos estímulos O perigo representa a culpa da nação.”