A resistência dos povos tradicionais é fundamental para frear a perda de direitos em megaprojetos na América Latina. De obras de extrativismo à construção de barragens e hidrelétricas, exemplos de obras e projetos na Colômbia e no Peru que levaram à mobilização popular foram debatidos na segunda mesa do seminário “Empresas e investimentos brasileiros no Exterior: tendências e cenários”, promovido por Oxfam Brasil e Fase nesta quinta, 22, em São Paulo.
O deslocamento forçado de comunidades indígenas e campesinas, a perda das terras de cultivo e dos recursos naturais para subsistência, o impacto sobre os povos e suas culturas e a possibilidade do aumento da exploração e do comércio ilegal na região foram algumas das consequências dos megaprojetos na Amazônia Peruana, um dos casos apontados pela representante do Forum Solidaridade, Doris Portocarrero. Atualmente, existe o projeto de construção de uma usina hidrelétrica na região, que afetaria diretamente 4 mil pessoas.
“Inicialmente, as comunidades pensaram que, se uma hidrelétrica ou linha de transmissão fosse implantada, elas poderiam ter acesso ao fornecimento de energia. Mas nenhuma das comunidades afetadas terá energia elétrica”, critica a representante. “A partir da greve nacional de 2009 contra os megaprojetos na Amazônia, começou um processo muito importante no Peru de posicionamento das organizações indígenas amazônicas e de organização e sistematização de todas as demandas dos povos indígenas do país, em especial com relação a saúde e educação intercultural. Uma das ferramentas das comunidades é a demanda por consulta prévia para que projetos como esse sejam executados. Isso é muito importante.”
“Não temos resistência contra a entrada de empresas brasileiras na Colômbia. O que estamos fazendo são esforços para mudar o modelo que está nos tirando de nossos territórios. Somos sobreviventes de uma política sistemática contra nossos povos e territórios. Nossa luta não é contra empresa, mas contra a lógica e o modelo”, reforçou um representante de movimentos sociais na Colômbia que, por motivos de segurança, não será identificado. “Hoje, existem mais de 100 empresas brasileiras na Colômbia trabalhando com infraestrutura, agronegócio, mineração. E hoje essas empresas têm mais direitos que os próprios direitos humanos.”
O representante também apontou para a necessidade de análise do cenário e dos impactos da atuação das multinacionais no país. “Nossas aprendizagens são na luta e na resistência, mas também na análise coletiva dos impactos dos investimentos e das tendências desses comportamentos. No Norte da Colômbia, contabilizamos 50 massacres que garantiram os projetos e os investimentos brasileiros. Hoje, há uma grande inversão de valores. Há empresas de mineração e de energia que pagam ao exército e à polícia para cuidar da segurança das empresas. São mais de 1.200 contratos desse tipo de serviço. E quem cuida da população?”
Políticas públicas favoráveis a multinacionais
O uso de segurança pública em empresas brasileiras na Colômbia é um dos exemplos de como o setor privado acaba se apropriando de bens públicos. O mesmo acontece com políticas públicas. Segundo a cientista política Ana Saggioro Garcia, pesquisadora do Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (PACS), “há uma mescla sobre o que é um interesse nacional, o que é bom pra todos, e o que é interesse empresarial privado. Na narrativa dos intelectuais ligados a bancos, interesse nacional e empresarial fazem parte do mesmo, e utilizam essa justificativa para defender o neoliberalismo. E foi assim que nossas empresas começaram querer garantias, principalmente contra riscos políticos nos outros países.”
Segundo a pesquisadora, esse processo foi intensificado a partir das reformas neoliberais da década de 1990, que favoreceram a internacionalização de empresas brasileiras, e continuadas nos governos seguintes. “O Brasil, com isso, faz uma ampla consulta ao setor privado e molda o Acordo de Cooperação e Facilitação de Investimentos, que se adequa a países em desenvolvimento. Esse acordo prevê governança institucional e responsabilidade social voluntárias, por exemplo. E acordos como esse acabam solidificando a representação dos interesses particulares de grupos empresariais privados como interesses nacionais. Em um momento de conflito, é o Estado brasileiro que vai em defesa, não os grupos empresariais. O Estado brasileiro acaba representando e assumindo o ônus dos interesses empresariais.”