Cria da favela, mulher preta buscando seu lugar nessa terra. Uma “árvore bonita aprendendo que minha raiz está por todos os lugares”. Assim se define Zeny Frasão Azevedo, conhecida também como Tutu ou Orun, artista de 36 anos que convidamos para ilustrar nosso calendário 2023.
Formada em produção audiovisual, com cursos de pós-graduação em produção executiva e gestão de TV, direção de arte para audiovisual (Senac) e projetos sociais e direitos humanos (Anhembi Morumbi), Zeny é uma das fundadoras do coletivo I N Á, formado por mulheres pretas e LGBTQIAP+ das favelas de São Paulo. O coletivo surgiu como plataforma alternativa para criação, produção e transformação social por meio da arte, buscando e construindo processos de autoconhecimento e cura para pessoas em vulnerabilidade.
A artista também atua como assessora de investimentos sociais, produtora cultural, desenvolvedora de projetos e artista visual no laboratório O R U N, em que idealiza processos de experimentação ancestral afrofuturistas e de liberdade imagética por meio de colagens e designs, “visando aprofundar as histórias pretas e a relação do povo negro com a beleza, a natureza, o conhecimento, a memória, o território, os caminhos de afeto e a afrovisualidade”.
Conte um pouco de sua história
Minha história contada por meus pais, começa em 14.08.1986.
36 anos e 7 dias, o número dos meus ciclos na terra, no tempo linear que os brancos criaram. Mas nem sempre o tempo foi linear, dividido entre passado, presente e futuro.
Quando descobri a cosmologia africana dos bantu-kongo e o cosmograma bakongo, comecei a reescrever minha história afrodiaspórica baseada na cosmovisão de África, o mundo regido pelos ciclos do tempo. Há fontes etno-históricas que demonstram que o cosmograma bakongo existia como um tradição simbólica de longa data na cultura dos bantu-kongo antes do contato europeu em 1482 e permaneceu em uso na África Central Ocidental no início do século 20.
O cosmograma é um símbolo emblemático do povo kongo e sintetiza uma gama de idéias e mensagens metafóricas que compõem e constroem seu senso de identidade dentro do universo. Representado por uma espécie de mandala conhecida como “Diekenga”, designa os ciclos do sol, da vida, do cosmo e do tempo. A criação do mundo, a vida humana e os grandes processos sociais são explicados através desse cosmograma.
Ao centro do círculo, uma cruz o divide em quatro etapas. A linha horizontal separa o mundo dos vivos, do mundo dos mortos. Essa linha horizontal é Kalunga. Segundo os ensinamentos do pensador congolês Fu Ki Au, Kalunga é uma força de fogo completa em si mesma, emergiu dentro do mbungi (o vazio) e tornou-se fonte da vida. Acendeu o vazio e o transformou.
Dessa forma o mundo é “a totalidade das totalidades, unidas por Kalunga, a energia superior mais completa que existe, dentro e fora de cada coisa no interior do universo. É uma realidade física pairando em Kalunga, metade emergindo para vida terrestre e metade submergindo à vida submarina e o mundo espiritual. Kalunga, é o portal entre esses dois mundos, é a vida em completude.
Como o tempo para os bantu-kongo é cíclico, cada corpo no universo possui seu próprio tempo cósmico, seu próprio processo de formação.
Voltando a minha história, quando eu tinha 5 anos, meu pai morreu. Para os kongo, a morte faz parte do movimento cíclico, em que constantemente estamos nascendo e morrendo. Desde então minha vida foi feita de nascer e morrer para que outros ciclos se fizessem. Destaquei a partida do meu pai, pois foi a partir daí que minha família se mudou para Paraisópolis, minha morada, minha quebrada, onde meu coração está.
Me despedir do meu mais velho me fez entender a importância do meu sangue negro. Fortalecer minha raiz a partir de ensinamentos de África me curou e compreendi, que a vida e história do povo preto devem ser celebradas, a partir da memória de meu pai sigo honrando nosso caminhar cíclico.
Sou cria da favela, uma mulher preta buscando meu lugar nessa terra. Árvore bonita aprendendo que minha raiz está por todos os lugares. Minha história apesar de muita luta, é também de encontro com os meus ancestrais, de amor, afeto, coletividade e autoconhecimento. Eu sou, porque nós somos.
Meu nome é Zeni Frasão Azevedo, conhecida também como Tutu ou Orun, renascendo a 36 anos e 7 dias, como os bantu-kongo, sendo parte dos ciclos, sendo o próprio ciclo, dia após dia.
Como você vê as desigualdades brasileiras?
A história do Brasil é também uma história sobre desigualdades socioeconômicas. Nosso país foi constituído sob a exploração de corpos pretos e indígenas. A escravidão gerou pobreza e anomia social e essa herança é responsável por grande parte dos problemas sociais da atualidade.
São as desigualdades que perpetuam todas as violências do tecido social desse território, seja em dimensões políticas, culturais, educacionais, econômicas e sociais.
Eu sou o reflexo do descaso social, sou aquela criança preta em vulnerabilidade, que cresceu às margens tentando fugir das estatísticas de genocídio do meu povo.
Aprendi que na favela não vencemos sozinhos, precisamos vencer coletivamente. Não existe política de enfrentamento às desigualdades sociais em território onde não há educação, saúde, trabalho, políticas públicas, dignidade e recursos de toda natureza.
É necessário que exista uma compreensão aprofundada dos problemas sociais para que haja justiça social, onde todos os sujeitos tenham garantidos seus direitos básicos, em todos os aspectos da vida social. Nesse sistema, estar vivo é luta ganha, ter como se alimentar é luta ganha, ter moradia é luta ganha, ter saúde é luta ganha.
É um longo caminho pois o uso do poder social e político garante que o sistema capitalista atual decida quem vive, quem morre, quem terá oportunidades, quem viverá para sempre na extrema pobreza e mantém o status quo para que não exista uma alternância de poder e pluralidade de visões, para que esse cenário desigual e engendrado de violências sistêmicas mude.
Apesar de toda dor e injustiça, que nós, grupos minorizados tenhamos coragem e força para seguir questionando as narrativas de poder para que nossos ancestrais se orgulhem e os que vierem depois de nós, possam existir em um mundo mais humano, igualitário e justo.
Fale sobre sua obra que está no calendário Oxfam Brasil 2023.
A composição das colagens busca criar um paralelo entre a realidade e o lúdico.
O objetivo é devolver a humanidade desses sujeitos invisíveis socialmente e colorir suas existências de forma que essas pessoas não representem apenas violência, pobreza e vulnerabilidade.
Esse trabalho é também uma imersão ao imaginário da paisagem cotidiana, é um mergulho nas histórias e sonhos que esses personagens da cidade talvez nunca tenham a oportunidade de contar. É um abraço de afeto aos invisíveis!